Como nossos pais

Uma resenha de “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak

Érika Batista
32 min readJun 10, 2020

Doutor Jivago estava na minha lista de leitura havia muitos anos, pelo menos uns dez. Desde quando meu universo de literatura russa se limitava à prateleira respectiva na biblioteca pública da minha cidade, que eu tencionava “zerar”. Mas os planos de lê-lo, por motivos que não vêm ao caso, só acabaram se concretizando este ano quando, no final de fevereiro, decidi incluí-lo no meu planejamento pessoal para o desafio literário “Um ano de literatura russa”. Terminei a leitura apenas em maio, e só agora consegui organizar os pensamentos numa resenha, à qual passo sem mais delongas, pois há muitos pontos interessantes a abordar.

O LIVRO

A trajetória da escrita, publicação e adaptação de Doutor Jivago e as consequências que a obra trouxe para seu autor já foram descritas na biografia de Pasternak constante da seção Vida e Obra aqui do site, para a qual remete-se o leitor a fim de evitar tautologia.

Cabe apenas acrescentar uma palavrinha sobre a tradução lida e a estrutura da obra.

As primeiras edições de Doutor Jivago apareceram no Brasil na década de 1950, pouco depois da primeira publicação do livro e ainda durante a vida do autor, trazidas ao público falante de português pela Editora Itatiaia, com tradução de Oscar Mendes, Milton Amado e Heitor Martins.

Ocorre que o próprio Pasternak leu uma versão russa da edição que circulava no Ocidente nessa época e não gostou. Considerou-a repleta de erros crassos e omissões, legando a um amigo uma versão corrigida do texto original. Essa versão final só foi publicada em 1978, enquanto, no Brasil, continuava-se a reeditar a tradução antiga da Itatiaia.

A versão de Doutor Jivago que eu li, porém, foi a da imagem abaixo, uma tradução de Zoia Prestes publicada pela Editora Record na coleção BestBolso (5ª ed., de 2014), que tomou por base o texto russo com as últimas correções do autor.

O livro se divide em duas partes, cada uma com sete capítulos subdivididos em trechos, um final, um epílogo, e os poemas de Iúri Jivago. Cada capítulo representa mais ou menos um ciclo na vida do protagonista, de duração e ambientação variáveis. A transição entre os trechos é fluida e sem marcação cronológica rígida: entre um trecho e o próximo pode passar um dia, uma semana, algumas horas ou até anos.

O ENREDO

Como Doutor Jivago é um romance de formação, sua trama vai do início do século XX — por volta de 1905 — até a Segunda Guerra Mundial, abarcando quase toda a vida do protagonista; mas a maior parte do livro se passa entre a Primeira Guerra Mundial e a guerra civil que se seguiu à Revolução Russa.

A história começa no funeral da mãe de Iúri, Maria Jivago. Algumas cenas depois, o pai dele, Andrei, suicida-se, mas longe dele, pois já tinha abandonado a família havia muito, feito outras famílias por aí, desperdiçado a fortuna no jogo, nas bebidas e em maus negócios. Iúri fica com o tio, Nikolai Vedeniapin, que é padre e escritor e mais tarde torna-se socialista. O tio não pode criá-lo e o remaneja para a casa de uns parentes, os Gromeko. Iúri é criado na casa deles e acaba se casando com a filha do casal, Antonina Aleksandrovna, conforme pedido da mãe dela no leito de morte. O rapaz não se opõe a tal pedido porque Tônia já era sua melhor amiga. Ele se forma em Medicina e, quando seu primeiro filho está nascendo, recebe a convocação para se juntar ao exército como médico militar e seguir para o front na Primeira Guerra Mundial.

Enquanto essas coisas acontecem na vida de Iúri, vamos conhecendo também outros núcleos e personagens, dos quais o mais importante é Larissa Fiodorovna Guichard. Quando ela aparece, seu pai acabara de morrer também, fazendo com que a viúva, Amália, e os dois filhos, Lara e Ródion, se vejam obrigados a mudar-se da cidadezinha nos Urais onde moravam, Iuriátin, para Moscou, em busca de oportunidades. Eles são ajudados nessa empreitada pelo advogado Komaróvski, que coincidentemente era o advogado do pai de Iúri também e estivera com ele no momento do suicídio. Komaróvski era amigo do finado Sr. Guichard e se tornara amante da viúva, tomando a seu cargo arranjar a vida da família na cidade grande. Hospeda-os num hotel, compra uma confecção para Amália com o dinheiro da herança, e a família passa a viver dos ganhos da confecção, enquanto Lara e o irmão dela. Ocorre que esse advogado se apaixona por Lara, então com apenas quinze ou dezesseis anos, e a seduz, transformando-a em sua amante, sem romper os laços com a mãe dela, aliás. Essa mancha na história de Laura a traumatiza para sempre. Ela tenta se livrar de Komaróvski e, após um tempo, consegue uma vaga para trabalhar na casa de uma colega de classe como professora particular da irmã caçula dessa colega. Lara trabalha ali por muitos anos, termina a faculdade e vai tentando dirigir a vida para seguir de acordo com seu plano, que consiste em casar-se com Pavel Pavlovitch Antipov — um rapaz um pouco mais novo apaixonado por ela desde cedo — e voltar com ele para a terra dela nos Urais, onde viverão do trabalho de ambos como professores.

Simultaneamente, assistimos também à história desse Pavel, ou Pacha, como Lara o chama. O pai dele — Pavel Ferapontovitch Antipov — é um operário da estrada de ferro que participa dos ensaios de revolução ocorridos na Rússia em 1905, o que o leva à condenação e ao exílio. A mãe do menino está internada com tifo, e então Marfa Gavrilovna Tiverzina, uma senhora idosa que é mãe de outro ferroviário amigo de Pavel Ferapontovitch, acaba pegando Pacha para criar. Vivendo no prédio dos ferroviários, Pacha conhece Lara, que frequenta o lugar porque uma colega de classe dela, Olga Demina, é neta de Marfa Tiverzina. Apaixonando-se perdidamente por Lara, ao perceber que a moça aceita suas atenções, ele passa a seguir a direção dela em tudo. Forma-se, casa-se com ela, mas, na noite de núpcias, Lara conta-lhe sobre seu passado com Komaróvski — que ela escondera do noivo até então — e a revelação o afeta sobremaneira, estragando a vida feliz que Lara planejava para eles em Iuriátin. Pacha mergulha no trabalho e no estudo, se sai muito bem em ambos, a ponto de tornar-se uma espécie de gênio da matemática e da filosofia, mas, nativo da capital, não se adapta à intelectualidade do interior, considera-a estúpida, e sente um vazio na vida. Então, quando estoura a Primeira Guerra Mundial, após ouvir os colegas falando de patriotismo, ele se voluntaria e segue para o front. Lara percebe que, na verdade, seu marido está partindo para fugir da infelicidade conjugal deles, e isso a abate. Dado momento, Pavel é preso pelo inimigo, e, quando as cartas dele param de chegar, ela faz um curso de enfermagem e segue para o front também, como voluntária, para pesquisar in loco o destino do marido.

Iúri (Oleg Menchikov) e Lara (Tchullan Khamatova) no hospital de campanha, na série russa de 2006.

É então que ela e Iúri se conhecem. Eles já tinham se cruzado algumas vezes antes, e ele já a vira, mas só então são formalmente apresentados um ao outro. Iúri e Lara trabalham juntos na cidadezinha de Meliuzeev, pequeno centro de uma região rural. A essa altura, a revolução de fevereiro de 1917 já abalara a pátria e existe uma polêmica sobre se a Rússia vai permanecer lutando na guerra europeia ou abandoná-la. Enquanto esperam a decisão, Lara e Iúri vão conversando, se identificando e se apaixonam um pelo outro. Porém, como ambos são casados, eles resistem e, após receberem a dispensa, volta cada um para o seu canto — ele para Moscou, ela para Iuriátin.

Três anos de mudanças, imprevistos, travessias, guerra, revolução, abalos, tiroteios, cenas de morte, pontes explodidas, destruições, incêndios — tudo isso, de repente, transformou-se em um vazio, sem sentido algum. O primeiro acontecimento verdadeiro, depois de um longo intervalo, era esta aproximação vertiginosa, de dentro de um trem, da casa que estava intacta e que existia ainda no mundo, lá, e onde cada pedrinha era preciosa. Isso é que era a vida, isso é que era a emoção, isso é que era o que buscavam os aventureiros, o que contava para a arte — o encontro com os parentes, o retorno para sua casa, o restabelecimento da existência.

Quando Jivago chega a Moscou, mais ou menos na época da revolução de outubro, a cidade está abalada pelos conflitos. As pessoas passam dificuldades para encontrar comida e principalmente lenha para se aquecer, e as famílias mais ricas estão sendo desapropriadas para que se possa alojar nas casas as famílias pobres resgatadas dos porões fétidos em que até então alugavam um cantinho. Só aí Iúri conhece seu filho, que já tem dois anos e o estranha. Tônia, esposa de Iúri, é uma mulher bem prática e precavida e se adapta bem às novas circunstâncias de vida. Apesar do berço de ouro, a família dela é simpática a uma mudança social, especialmente porque o pai de Tônia, Aleksandr Gromeko, e o irmão dele, Nikolai, são professores universitários. Por isso e por instinto de sobrevivência, Tônia já tem a ideia de ceder voluntariamente boa parte da casa para acomodar outras famílias, ficando só com uns três cômodos para sua família, que também é o máximo que eles dariam conta de aquecer. Eles vivem um tempo em Moscou, mas, quando a situação aperta mais, decidem fugir para Varikino, a propriedade rural que costumava pertencer aos Krüger, família de Tônia pelo lado materno.

Iúri (Omar Sharif), Tônia (Geraldine Chaplin) e o pai dela, Aleksandr Gromeko (Ralph Richardson) no trem para Varikino, na adaptação hollywoodiana de 1965.

Essa propriedade, no entanto, fica perto de Iuriátin, a cidade em que Lara mora. A família de Jivago segue de trem para lá. No caminho, encontram Pacha Antipov, que agora se esconde sob o pseudônimo Strelnikov. Dado como morto, ele conseguira, no entanto, escapar do acampamento de prisioneiros alemão em que fora parar após sua captura, e agora estava trabalhando para o Exército Vermelho como uma espécie de tribunal marcial independente. Viajando pela Rússia para resolver os conflitos surgidos guerra civil, ele não pertencia ao partido bolchevique, identificando-se como um militar simpatizante da causa revolucionária.

Chegando em Varikino, Iúri e família conseguem um cantinho na antiga casa dos Krüger, e, por um tempo, vivem sossegados lá cultivando a terra e fazendo outros trabalhos manuais. No entanto, depois de mais ou menos um ano nisso, no qual eles conseguem resolver tudo o que precisam graças à intermediação de Anfim Samdeviatov, um advogado bolchevique que conheceram no trem e que conhece toda a população local, Iúri começa a ir para Iuriátin cuidar de pequenos negócios pessoalmente e visitar a biblioteca. Lá, um dia, ele reencontra Lara, resolve fazer uma visita a ela, não volta da visita naquela noite, e eles se tornam amantes.

Depois de uns três meses vivendo essa vida dupla e enganando a esposa grávida, Iúri resolve romper com Lara, despede-se dela toda chorosa, e está voltando para casa a cavalo no fim do dia, quando se convence de que “não se despediu propriamente” de Lara, considerando que seria uma despedida definitiva. E faz meia volta. No meio do caminho, porém, ele é interceptado pelos Irmãos da Floresta, um grupo de guerrilheiros autônomo associado ao Exército Vermelho e liderado pelo filho do antigo administrador de Varikino, Averki Mikulitsin, que ainda mora lá com a esposa. Sabendo que Iúri é médico, os Irmãos da Floresta, que tinham acabado de perder seu enfermeiro, o mobilizam compulsoriamente para se tornar o médico da guerrilha. E assim ele desaparece sem dar notícias a ninguém e passa pelo menos um ano e meio no seio da floresta, se deslocando com os guerrilheiros.

Quando a guerra civil acaba, Iúri foge dos guerrilheiros antes de ser dispensado e volta para casa a pé. Mas em vez de procurar sua família em Varikino, ele vai para a casa de Lara em Iuriátin. Iuriátin fora um dos últimos redutos dos soldados Brancos, mas agora estava na mão dos Vermelhos, assim como o resto do país. Em uma dessas mudanças de mão, Varikino fora sido destruída. Jivago descobre que tanto os seus, quanto os Mikulitsin tinham partido antes da destruição, mas na aldeia pegada à propriedade houvera um massacre. Descobre também que sua família está em Moscou e que seu segundo rebento nascera — uma menina, batizada de Maria em homenagem à finada mãe dele — , mas não se apressa em ir ao encontro deles. Continua morando com Lara, ela o convence a arranjar um emprego para que eles não fiquem na mira do Exército Vermelho pela ociosidade, e eles tocam a rotina por uns cinco meses até que Iúri recebe uma carta de despedida da esposa, contando que ela e o pai e as crianças tinham sido deportados compulsoriamente. Apesar de abalado, ele continua onde está.

A essa altura, a situação dele e de Lara em Iuriátin já está quase insustentável. Em parte por causa das origens nobre e burguesa dos dois, mas também devido a seu pensamento independente. Eles não concordam em tudo com o grupo que chegara ao poder, e assim se tornam suspeitos. Outro motivo que coloca Lara em risco é sua ligação com Strelnikov, que, após o fim da guerra civil, caíra em desgraça perante seus aliados pela falta de filiação partidária e por ter sido instrumento para o cometimento de muitas crueldades, já que servia de juiz e carrasco. Percebendo que precisam tomar uma providência para salvar a Katenka, a filha de Lara e Antipov-Strelnikov, que mora com a mãe, o casal resolve se esconder em Varikino, onde ainda há algumas construções de pé. Eles vão para lá e vivem alguns dias em um misto de tensão e idílio, aproveitando a oportunidade de ficarem juntos, mas prevendo que a felicidade não vai durar. E de fato. Aquele mesmo Komaróvski que corrompera Lara aparece com uma proposta de fugirem todos para uma área da Rússia onde ainda havia remanescentes dos Brancos e dali para a Mongólia. Iúri se recusa a deixar outro homem — especialmente Komaróvski — decidir o destino dele. O advogado já os procurara uma vez em Iuriátin e ouvira uma recusa à sua proposta. Visitando-os de novo em Varikino, refaz a proposta como um ultimato, pois já vai ele mesmo voltar para a referida região. Dizendo que a situação da Lara é urgente porque Strelnikov fora capturado e executado, ele convence Iúri fingir que vai se juntar a eles mais tarde para que Lara aceite acompanhar Komaróvski. Iúri faz isso e depois fica no casebre sozinho amargando a vida, dividido entre acessos de depressão e de criação.

Certo dia, o próprio Strelnikov, dito morto, aparece na casinha, que ele já tinha usado de refúgio antes. Viera ver se ainda encontrava Lara e a filha uma última vez, mas se depara apenas com Iúri. Ele confirma que estava sendo caçado. Eles têm uma longa conversa, e, durante a noite, enquanto Iúri dorme, Strelnikov se mata. Aí acaba a parte do livro dividida em capítulos.

Depois, há uma seção denominada “Final”, que conta os últimos anos de vida de Jivago. Ele volta a pé para Moscou, quando consegue reunir forças para sair um pouco da depressão, mas nunca se recupera totalmente. Abandona as atividades, as buscas pela família, chega a passar fome. Alguns amigos arranjam um local pra ele morar, ele acaba se amigando com outra mulher, Marina Chapova, com a qual tem duas filhas, até que um dia, após um encontro com dois amigos, desaparece. Reencontrara um meio-irmão por parte de pai, um jovem siberiano que de vez em quando aparece como anjo da guarda no caminho de Iúri e que tenta ajudá-lo a recompor a vida, retomar a escrita, a Medicina, o contato com a família que está no exterior… Mas Iúri, que a essa altura tem por volta de quarenta anos, não chega a executar nenhum dos planos para repor nos eixos sua vida, interrompida por um ataque cardíaco. Esse “Final” acaba com a Lara aparecendo por uma coincidência no funeral de Iúri e despedindo-se ternamente dele para sumir no mundo também um pouco depois.

O livro ainda tem um epílogo que se passa na Segunda Guerra Mundial, onde se conta a história de uma filha perdida de Iúri e Lara que a mãe dera para a adoção, e a de dois amigos de Jivago — Innokenti Dudorov e Micha Gordon — que foram parar nos Gulags durante os anos do terror estalinista, no final da década de 1930. E a história se encerra numa nota levemente esperançosa, com esses amigos, ambos reabilitados — um antes da guerra, outro graças à sua participação no combate — lendo a história de Jivago.

A OBRA, OS PERSONAGENS, OS SÍMBOLOS

Doutor Jivago é uma obra monumental nos vários sentidos dessa palavra. Do número de páginas à relevância dos assuntos abrangidos nela, é tudo volumoso. Além disso, a qualidade artística faz da obra um monumento a uma época, a um tipo de pessoa, à vida, mesmo, como o autor a entende.

Nesse sentido, a obra ultrapassa os limites da literatura e ganha características de diversas outras artes. Sua estrutura tem um quê de musical, um quê de sinfonia, com múltiplas vozes ou instrumentos que tocam trechos separados até se unirem nos momentos épicos da trama. Sua parte introdutória, em especial, se assemelha a um balé, com os bailarinos dos diversos núcleos dançando em partes distintas do palco, por vezes se aproximando e se roçando, sem nunca se unir numa mesma coreografia até o momento apropriado. E há também a pintura, que parece receber um posto privilegiado nas páginas de Doutor Jivago, por meio das encantadoras descrições que o livro contém.

Retrato de Boris Pasternak, pintado por seu pai.

Não sei se o fato de ter um pai pintor pesou nesse ponto, mas as descrições de Pasternak parecem pinturas e atuam com mais relevância que o normal na composição da atmosfera das cenas. Particularmente, não sou fã de descrições da natureza, que raramente chegam aos pés da natureza real. Pasternak nem tenta: as cenas que descreve são esteticamente perfeitas demais para serem reais, e isso torna mais simples aceitá-las em sua função de imagem. Os jogos de cores, de texturas e movimentos que o autor cria nesse livro são quase visíveis e palpáveis de tão vívidos. Veja-se, por exemplo, essa cena e a simetria que ele constrói entre rebanhos de gado confinados e as nuvens de neve:

O restante do incontável rebanho espremia-se em uma pequena clareira. A floresta escura cercava a clareira por todos os lados, com a parede alta, como montanhas, de pinheiros triangulares que pareciam estar sentados na terra em cima dos traseiros gordos de seus galhos inferiores esparramados.

Na Sibéria, cultivavam uma raça suíça premiada. Quase todas da mesma marca, pretas com manchas brancas. As vacas, como as pessoas, sofriam as privações de longas travessias e de falta de espaço insuportável. Coladas umas às outras em seus flancos, elas enlouqueciam de tanta aglomeração. E, em seu atordoamento, esqueciam-se do pasto e com uivo de touro, subiam uma em cima das outras, suspendendo seus úberes pesados com dificuldade. Os bezerros, encobertos por elas, escapavam de baixo delas, com os rabos levantados, quebrando arbustos e galhos e corriam para a mata. Atrás deles, aos berros, corriam os pastores — homens velhos e crianças.

E como presas em um círculo apertado, desenhado pelos cocorutos dos pinheiros no céu de inverno, da mesma forma impetuosa e desordenada, apertavam-se, empinavam-se e amontoavam-se as nuvens de neve preta e branca sob a clareira florestal.

Outra cena sensacional, do ponto de vista descritivo, acontece em dois momentos. Primeiro o autor trabalha todo cenário em tons alaranjados e transparências, usando em seguida esses tons para camuflar o personagem no cenário, escondendo-o por acidente em um lugar e momento propícios para ouvir uma conspiração que aconteceria dentro de instantes:

Na floresta, havia muita folhagem que não amarelara. Nas suas profundezas, estava quase toda fresca e verdejante. O sol da tarde transpassava a floresta com seus raios. As folhas deixavam a luz do sol penetrar e brilhavam de costas como a chama verde e transparente de vidro da garrafa.

Na clareira aberta, perto de sua tenda, Kammenodvorski, o chefe de comunicação, queimava a papelada lida (…). A fogueira, com o sol poente ao fundo, era tão transparente quanto a folhagem da floresta. Não se via o fogo, e apenas pelas ondas de calor que reverberavam podia-se concluir que havia algo queimando.

Aqui e ali, a floresta matizava-se com variados tipos de frutinhas silvestres maduras: com os penduricalhos enfeitados do serdetchnik, com o sabugueiro flácido de cor pardo-atijolada e com os cachos rutilantes brancos e carmesins da kalina. Tilintando as asinhas de vidro, as cigarras, transparentes como o fogo e a floresta, flutuavam lentamente pelo ar.

Desde a infância, Iúri Andreevitch gostava da floresta vespertina que refletia o fogo do crepúsculo. Em momentos como esses, sentia como se ele também estivesse sendo trespassado por lâminas de luz. Como se uma dádiva do espírito vivo penetrasse em seu peito, atravessando todo o seu ser e saísse pelas espáduas, como um par de asas. Aquela primeira impressão de garoto, que fica para a vida inteira em cada um, e que depois lhe parece, para todo o sempre, ser sua imagem interior, sua personalidade, despertou em sua plena força primordial dentro dele e obrigou a natureza, a floresta, o crepúsculo e tudo que estava ao alcance de sua vista a se transformar na figura similarmente primordial e abrangente de uma menina. “Lara!” — de olhos fechados, balbuciou e mentalmente dirigiu-se à totalidade da vida, à terra inteira de Deus, a todo o espaço ensolarado que se estendia diante dele. (…)

No caminho até Panfil, o doutor sentiu que não tinha mais forças. O cansaço o dominava. (…) Parou em uma clareira coberta de folhas da mata adjacente. As folhas espalhavam-se na clareira como peças em um tabuleiro de damas, assim como os raios de sol caíam no tapete dourado. Essa dupla mistura de cores cruzadas fazia a cabeça girar e o fazia dormir como a leitura em letras miúdas ou um resmungo monótono.

O doutor se deitou sobre a folhagem sedosa e farfalhante, com a cabeça apoiada na mão, e esta sobre um travesseiro de musgo, ao pé de uma árvore. Adormeceu em um instante. O multicolorido das manchas solares que o fizeram adormecer cobriam em desenho xadrez o seu corpo esticado sobre a terra e o tornavam invisível, indiferenciável no caleidoscópio dos raios e folhas, como se ele tivesse posto um chapéu mágico. (…)

Como um retalho colorido que se dobrava e se abria, pelo lado ensolarado sobrevoava uma borboleta marrom com manchas. O doutor, com olhos sonolentos, observou seu voo. Ela pousou naquilo que mais se assemelhava à sua cor, o casco marrom e manchado do tronco do pinheiro, com o qual se fundiu, desaparecendo tão completamente como Iúri Andreevitch, oculto pelo jogo de luz e sombra, desaparecera.

Por essa natureza de monumento, o romance nos faz lembrar de dois outros romances históricos, Guerra e paz, de Tolstói e O Don silencioso, de Chôlokhov. A profusão de descrições, personagens, eixos, o formato de colagem de acontecimentos com cronologia mais ou menos solta — tudo isso aproxima Doutor Jivago das referidas obras. Além disso, todas versam sobre épocas marcadas por mudanças sociais e conflitos militares importantíssimos. O Don silencioso trata, inclusive, da mesma época que Doutor Jivago, mas o enfoque nos cossacos do Don dá uma tônica diversa àquele livro, cujo autor se permite menos divagações filosóficas descoladas das cenas em si, em comparação com Tolstói e Pasternak. Aliás, a semelhança estrutural com Guerra e paz talvez não seja acidental, já que Pasternak chega a retomar uma reflexão de Tolstói sobre a História exarada naquele livro e complementá-la. Tolstói diz:

Diante de certos fenômenos históricos, desnudados de sentido, ou antes, cujo sentido nos escapa, o recurso ao fatalismo é indispensável. Com efeito, quanto mais nossa razão se esforça por explicá-los, tanto mais nos parecem desarrazoados, incompreensíveis. Todo homem vive para si mesmo, utiliza sua liberdade para atingir fins particulares, sente em todo o seu ser que pode ou não realizar tal ou qual ato; mas, desde que age, seu ato realizado em tal momento da duração torna-se irrevogável e pertence doravante à História, onde ele não mais parece livre, mas regido pela fatalidade.

A vida humana tem duas faces. Há de uma parte a vida individual, que é tanto mais livre quanto seus interesses são mais abstratos; há por outra parte a vida elementar, gregária, em que o homem deve inevitavelmente submeter-se às leis que lhe são prescritas.

O homem vive conscientemente por si mesmo, mas participa inconscientemente na prossecução dos fins históricos da humanidade inteira. O ato realizado é irrevogável e, por sua concordância com milhões de outros atos realizados por outrem, assume um valor histórico. Quanto mais alto está colocado o homem na escala social, mais importantes são os personagens com os quais entretém relações, maior também é seu poder sobre o próximo, mais cada um de seus atos se reveste de um caráter evidente de necessidade, de predestinação.

“O coração dos reis está na mão de Deus”.

O rei é escravo da História.

A História, isto é, a vida inconsciente, geral, gregária da humanidade, faz cada minuto da vida dos reis servir à realização de seus desígnios.

E Pasternak põe o seguinte na mente de seu protagonista:

Tornou a pensar que a história, aquilo que chamam de curso da história, se apresentava para ele de forma bem diferente do costumeiro, desenhando-se como a vida do mundo vegetal. No inverno, sob a neve, os galhos desnudos da floresta foliácea são magros e frágeis como pelos na verruga de um velho. Na primavera, em poucos dias a floresta transforma, atinge as nuvens e podemos nos esconder ou nos perder em seu labirinto de folhas. Durante essa transformação, ela se move com uma velocidade superior à dos animais, pois o mundo animal não cresce tão rápido como as plantas; no entanto, este movimento não pode ser observado. A floresta não muda de lugar, não podemos ficar à espreita e surpreendê-la no ato de se mover. Por mais que a olhemos, também parece, a nossos olhos, a imobilidade da eternamente crescente, continuamente cambiante vida da sociedade, da história, movendo-se tão invisivelmente em suas incessantes transformações como a floresta na primavera.

Tolstói não levou sua ideia até o fim quando negou o papel de promotor a Napoleão, governantes e chefes militares. Ele pensava exatamente o mesmo, mas não exprimiu isso com toda a clareza. A história ninguém faz, não é visível, assim como não se vê como cresce o capim. As guerras, as revoluções, os czares, os Robespierres — são seus estimuladores orgânicos, seu fermento. As revoluções produzem pessoas de ação, fanáticas, maniqueístas, gênios limitados. Elas, em algumas horas ou dias, derrubam a ordem antiga. Os golpes duram semanas ou muitos anos, e depois, durante décadas, séculos, reverenciam o espírito limitado que levou ao golpe, como se fosse um santo.

Tais reflexões podem bem ter ocorrido a Jivago devido às raízes tolstoístas da mentalidade do personagem. Cabe lembrar que Iúri cresceu no início do século XX, e seu tio e principal influência intelectual, Nikolai Vedeniapin, era um padre amigo de tolstoístas que compartilhava com eles diversos posicionamentos, embora não todos. Remonta à doutrina tolstoísta a influência do Cristianismo, mas numa versão distanciada das bases ortodoxas e aplicada a uma vivência que se aproxima do socialismo utópico. Segundo essa perspectiva, o Cristianismo é incorporado mais como chave interpretativa e elemento revolucionário da História da humanidade do que como religião em si.

Acho que se o animal adormecido dentro do homem pode ser detido com a ameaça, seja da cela ou da punição além-túmulo, então o emblema supremo da humanidade seria o domador de circo, e não o pregador se sacrificando.

Não se sabe se o autor compartilhava essa concepção do seu personagem, até porque Pasternak era judeu. Curiosamente, suas reflexões sobre o judaísmo e o destino do povo judeu — representando no livro, principalmente, por Micha Gordon, amigo de infância de Iúri — são amargas e contêm gotas de censura. Veiculada pelo próprio personagem, a censura recai sobre os judeus por se apegarem a tradições que ele vê como ultrapassadas, contrárias ao caminho normal da humanidade — o do cristianismo — , atraindo, assim, para si, sofrimentos desnecessários e maiores que os dos demais.

Cabe lembrar que Micha foi educado junto com Jivago e Tônia na casa dos pais dela, intelectuais de origem nobre, e, por isso, cresceu ele mesmo sob a influência do tolstoísmo. Essa influência era tão forte que o trio até fez uma espécie de pacto de castidade na adolescência[1], o que nem Vedeniapin via com bons olhos e sabe-se lá se não afetou o futuro relacionamento de Iúri com sua esposa e a própria atitude débil dele diante da sensualidade.

Porque, para Iúri, o gênero feminino parece cindir-se em duas categorias distintas que podemos chamar de mulher-mãe e “mulher-vênus”. Esta última está representada na figura de Lara, a quem ele descreve assim:

Quando você, como uma sombra, de uniforme, surgiu da escuridão dos fundos do apartamento, eu, um menino que nada sabia a seu respeito, entendi, com todo sofrimento, a força refletida em você: esta menina franzina e magrinha está carregada de eletricidade até o limite, de toda feminilidade imaginável no mundo. Se eu chegar perto dela ou tocá-la com o dedo, uma faísca iluminará o quarto e, se não matar no mesmo instante, carregará a gente com eletricidade para toda a vida, com uma tristeza magneticamente atraente e piedosa. Fiquei repleto de lágrimas delirantes, brilhava todo por dentro e chorava. Sentia uma pena mortal de mim, um menino, e mais ainda de você, uma menina. Todo o meu ser se admirava e indagava: se é tão doloroso amar e receber eletricidade, provavelmente deve ser ainda mais doloroso ser mulher, ser eletricidade, inspirar amor.

Já sobre Tônia, registra o seguinte em seu diário:

Eu e Tônia nunca nos distanciamos um do outro. E este ano de trabalho nos aproximou mais ainda. Observei como Tônia era despachada, forte e incansável, como era perspicaz na escolha de trabalhos para que, ao trocar de atividade, perdesse o mínimo de tempo possível.

Sempre achei que toda concepção é imaculada, e que esse dogma a respeito de Nossa Senhora contém o conceito genérico de maternidade.

Em qualquer parturiente encontra-se o mesmo reflexo da solidão, do abandono e da concessão de si mesma. Nesse momento vital, o papel do homem é tão irrelevante quanto se ele tivesse nada a ver com isso, como se tudo tivesse caído do céu.

A mulher traz sozinha ao mundo seus filhos, sozinha transporta-se para um segundo plano da existência onde tudo é mais tranquilo e onde se pode colocar o berço, sem medo. Ela, sozinha em sua resignação, alimenta e cria os filhos.

O nascimento de Vênus. Sandro Botticelli, 1483. Detalhe.

Percebe-se nos dois trechos um elemento de devoção. No entanto, a devoção por Lara é uma devoção pagã, carregada de desejo, de paixão e dedicação, que até desumaniza seu ídolo — pois a mulher não é sujeito do amor, segundo Iúri, ela é seu objeto; não ama, inspira amor. A devoção por Tônia, por outro lado, tem o caráter distante da devoção por um santo, votada a alguém que está em um nível superior e que, portanto, seria sacrílego desejar e inútil tentar ajudar.

Essa dicotomia não é inédita na literatura russa. Outro exemplo de obra em que ela aparece bem marcada é Nós, de Zamiátin, na qual a mulher-mãe é representada pela personagem O-90, enquanto a mulher-vênus, pela enigmática I-330. Cabe ressaltar que, assim como Iúri Jivago, D-503 é um homem que cresceu sem mãe, e isso talvez influencie no respeito e admiração que eles têm por figuras maternais, e que sempre alimentam de longe, embora abandonem tais figuras — talvez contando com seu perdão santo — sem hesitação para seguir apaixonadamente as mulheres-vênus.

Iúri, particularmente, parece dilatar os limites de sua conclusão de que a mulher tem os filhos sozinha para concluir de maneira tácita que, se é assim, ela é bem capaz de criá-los sozinha também.

A Madona com o livro. Sandro Botticelli, 1479. Detalhe.

É certo que parte dos acontecimentos que separa Jivago de seu primogênito — a convocação para a guerra e depois seu sequestro pelos Irmãos da Floresta — não é de responsabilidade do médico. Porém, o distanciamento entre eles começa no próprio nascimento do menino, quando Iúri não se sente preocupado com o nascituro e se interessa somente pelo estado da esposa. Mais tarde, quando o menino o repele, assustado, da primeira vez que o vê, Iúri aceita com bastante prontidão que aquela reação é mau presságio. No pouco tempo em que eles interagem, Iúri parece ter menos paciência com seu “Churotchka” do que teria com a filha da amante mais tarde. E nem é preciso dizer que ele só foi sequestrado pelos guerrilheiros por fazer meia-volta no caminho que o levaria à esposa grávida e ao filho, e correr de volta para os braços da amante. Após voltar para a civilização, ele não faz muito esforço para encontrar os seus. Nunca mais. Eles só se reencontram nos sonhos de um Iúri culpado por abandonar o filho — logo ele, que também era um filho abandonado.

O pai de Churotchka estava sabe-se lá onde. Estava longe, sempre longe, a vida inteira à margem deles, e seria isso o pai, serão assim os verdadeiros pais?

E eis porque esta resenha se chama “Como nossos pais”. Foi inevitável lembrar da incrível canção de Belchior e Elis. Os três principais personagens do livro, em que pese vivendo em tempos tão diferentes dos de seus pais, acabam por repetir os destinos deles ao menos no aspecto familiar.

Iúri, que nem sabia por onde andava seu pai ou dos irmãos que tinha espalhados por aí acabou legando aos filhos de seu casamento a mesma sina. A filha Maria ele sequer conheceu. Lara, cuja mãe se achegara a um homem prático para obter proteção e acabara expondo a filha a um tremendo perigo, termina o livro partindo com o mesmo homem prático pelos mesmos motivos, e levando consigo uma jovem filhinha que sabe-se lá como acabará. E Antipov, cujo pai o entregara a outros para lutar por uma causa, impedindo que algum afeto se desenvolvesse entre eles, acaba largando a própria família para trás pelo mesmo motivo. Partindo na empreitada que ele alega ter assumido para tornar-se digno da esposa e da filha, ele as perde em todos os níveis.

Essa repetição da maldição familiar é de um efeito irônico incrível, e parece questionar o poder de qualquer revolução para alterar significativamente a realidade em problemas essenciais das relações humanas.

Mas a questão se aprofunda quando examinamos cada um desses personagens, que parecem carregados de uma simbologia importante.

Curiosamente, a Parte 1 e a Parte 2 do livro terminam com conversas entre Iúri e Antipov, já convertido em Strelnikov. Na segunda e última conversa, Strelnikov compara Lara com a Rússia. Ela é de uma pessoa difícil, de passado sofrido, que ele gostaria de ter purificado, gostaria de ter salvado. Nessa conversa, eles também chegam à conclusão de que Lara é atrai amores e isso é um peso enorme para ela. Partindo dessas pistas deixadas pelo autor, entendo que Lara simboliza a Rússia: filha de estrangeiros, seduzida e prostituída muito jovem pela burguesia — representada, no livro, por Komaróvski — , que arruína sua moralidade, transformando-a num ser confuso e culpado. Lara é dedicada, disciplinada, muito trabalhadora, mas complicada e alvo eterno de disputa pelos homens.

Iúri, por sua vez, simboliza a vida, a força de vida. Esse símbolo já está presente no seu sobrenome: Jivago, em russo é Живаго, grafia antiga da palavra живой (vivo) no caso acusativo (живого, jivogo, que se pronuncia jivôvа). De modo que logo nas primeiras linhas do livro, no enterro da mãe de Iúri, quando perguntam “Quem morreu?” e alguém responde “Jivago”, o texto original contém um jogo de palavras, para o qual um amigo russo chamou minha atenção. Quem morreu? Um vivo. Isto é, o livro já inicia com a morte da vida, por assim dizer.

Ilustração de Diana Kuznetsova. Aquarela.

E Iúri Jivago, andando na sua geração, é retratado com frequência como um vivo entre os mortos.

No decorrer dos dias seguintes, Iuri percebeu como se sentia solitário. Não culpava ninguém da casa. Aparentemente, ele mesmo quisera e conseguira isso.

Estranhamente, os amigos sumiram ou ficaram inexpressivos. Ninguém conservou seu mundo ou opinião própria. Eles estavam bem mais nítidos em suas lembranças. Provavelmente ele os superestimava antigamente.

Tinha sido fácil, enquanto a ordem das coisas permitir que os abastados fizessem extravagâncias à custa dos despossuídos. A extravagância e o direito à ociosidade desfrutados pela minoria enquanto a maioria sofria, podiam criar uma ilusão de verdadeiro caráter e originalidade.

Mas mal os humildes se levantaram e os privilégios das camadas da alta sociedade foram abolidos, no entanto, rapidamente todos os mudaram e, sem se lastimar, abandonaram o pensamento independente, que pelo, visto nunca tiveram!

O embate entre vida e morte perpassa toda a história do personagem. A grande aspiração de Iúri é viver. Ele quer uma vida que se entrelace com a natureza, com a sociedade; um forte impulso interno o empurra em direção à vida, mas as circunstâncias o arrastam o tempo todo para a morte, que acaba, paradoxalmente, por moldar-lhe a vida. Isso porque Iúri é um homem débil, sem força de vontade, como Tônia acertadamente o descreve em sua carta de despedida, e poucas são as ocasiões em que ele toma nas mãos as rédeas do próprio destino. Geralmente vai tocando a rotina ao sabor da maré, adaptando-se às circunstâncias que cruzam seu caminho.

Após o enterro da mãe, que abre o livro, o pai de Iúri também morre, fazendo com que ele seja entregue aos cuidados de parentes que lhe escolherão a esposa. No exato momento em que nasce seu primogênito, ele é convocado para a Primeira Guerra, ou seja, sai de um ambiente de vida para um de morte. O mesmo acontece quando ele está indo rumo à amada, que compartilha suas concepções a respeito da vida, e os guerrilheiros o aprisionam.

Como médico, ele é uma pessoa que traz vida à luz, recupera vidas. Sua atuação vivificante também se estende à vida artística, pois, além de médico, ele é poeta. Enquanto uma de suas profissões vivifica o corpo, a outra vivifica a mente, a alma.

Cabe apreciar um pouco essa relação do personagem com a arte, porque os trechos que descrevem sua rotina criativa são familiares a quem quer que também tenha aspirações estéticas do mesmo tipo. Ele descreve a inspiração:

Após duas ou três estrofes e algumas imagens que o impressionaram particularmente, o trabalho o dominou e ele sentiu a aproximação daquilo que chamam de inspiração. A correlação de forças que rege a criação parece que fica invertida. A liderança não é da pessoa que escreve, nem do estado de espírito para o qual ela busca a expressão, mas sim da linguagem com a qual ela quer se exprimir. A linguagem, pátria e receptáculo da beleza e do sentido, começa, ela mesma, a pensar e falar pela pessoa e tudo se transforma em música, não em relação à ressonância exterior e audível, mas em relação à impetuosidade e grandeza de seu fluxo interno. Então, assim como a colossal queda da corrente do rio que com seu próprio movimento, afia as pedras do fundo e gira as rodas do moinho, o fluxo da linguagem, pela força de suas próprias leis, cria em caminho, em sua passagem, a medida, a rima e mil outras formas e imagens ainda mais importantes, mas até então desconhecidas, inexploradas, não denominadas.

A agonia da correção “sóbria” dos próprios textos:

O escrito da noite anterior dividia-se em duas categorias. Cópias passadas a limpo — versões aprimoradas de poemas antigos — estavam anotadas em caligrafia nítida. As novas estavam rabiscadas com abreviações, reticências, letras ilegíveis.

Examinando os garranchos, o doutor sentiu a decepção habitual. À noite, aqueles pedaços de rascunhos provocavam-lhe lágrimas e impressionavam-no com alguns sucessos inesperados. Agora, eram exatamente esses pretensos sucessos que o paralisavam e entristeciam com suas tendências artificiais.

A vida inteira sonhara com uma originalidade suavizada e sóbria, não reconhecida externamente e dissimulada sob uma camada usual e comum; à vida inteira aspirara à elaboração daquele estilo discreto e despretensioso que, sem perceber, o leitor de alguma forma assimila. A vida inteira preocupara-se com um estilo imperceptível, que não atraísse a atenção de ninguém, e aterrorizava-se por perceber como ainda estava longe deste ideal.

Nos rascunhos escritos na véspera, ele quisera, com métodos simples, como um balbucio no limiar da sinceridade de uma cantiga de ninar, expressar seu sentimento misto de amor e medo, tristeza e coragem, de maneira que desaguasse por si próprio, independente das palavras.

Agora, no dia seguinte, revendo esses esboços, ele achou que lhes faltava um enredo substancial que levasse a um todo único, as linhas se desintegravam.

O processo de universalização do autobiográfico, do pessoal:

O motivo dessas sucessivas correções era a busca de precisão e força de expressão, mas também correspondia à necessidade de descrição interna que não lhe permitia expor demais suas experiências pessoais e os reais acontecimentos de seu passado, sob pena de ferir ou magoar as pessoas diretamente envolvidas. Como resultado disso, o calor fumegante da realidade saía dos poemas e, longe de se tornarem mórbidos e desvitalizados, surgia neles a ampla paz da reconciliação, que elevava o caso particular ao universal e acessível a todos. Ele não perseguia esse objetivo, mas essa amplidão vinha por si mesma como consolo, como uma mensagem de Lara enviada a ele da estrada que seguia, como um abraço de longe, como sua imagem em um sonho ou como o toque da mão dela em sua testa. E ele gostava dessa marca de nobreza nos poemas.

A alegria da comunhão com outras mentes com aspirações semelhantes:

Ah, mas não foi nada disso que encheu as primeiras horas de seu reencontro e os levou a se abraçarem, rir, chorar, falar ininterruptamente e sufocar de emoção.

O que os aproximou foi o encontro de dois temperamentos criativos, e embora ligados por laços familiares, com o passado surgindo e se interpondo, e as recordações voltando, e a conversa girando em todos dos novos acontecimentos e circunstâncias, ocorridas durante a separação, tão logo se chegou ao essencial, àquilo que só é sabido por quem tem uma aptidão para o trabalho criativo, todas as diferenças e todos os outros laços entre eles desapareceram — já não eram tio e sobrinho, nem havia a diferença de idade — , restando somente o parentesco de caos com caos, de energia com energia, de primeiro princípio com primeiro princípio.

Boris Pasternak, Marina Tsvetáeva e Rainier Maria Rilke foram muito amigos e mantiveram longa e apaixonada correspondência.

E essa cena irônica, que traduz o descompasso entre o reconhecimento moral e o reconhecimento material do trabalho do escritor:

Quando, por culpa dele, caíam em uma miséria involuntária, (…) submetendo-se às fantasias de Iúri Andreevitch, ela partia com ele em andanças pelos pátios, em busca de trabalho. Os dois, por empreitada, serravam lenha para os habitantes de andares diferentes. Alguns, principalmente os especuladores que enriqueceram no início da NEP e as pessoas ciência e arte, íntimas do governo, começaram a adquirir móveis. Certa vez, Marina e Iúri Andreevitch, pisando com cuidado nos tapetes com as valenki, para não trazer serragem da rua, carregaram lenha até o gabinete do dono do apartamento, que estava grosseiramente imerso em uma leitura qualquer e sequer lançou um olhar para os dois. Foi a dona da casa quem combinou tudo, quem dava as ordens e pagava.

“Em que este porco está absorvido dessa forma?” ficou curioso o doutor. “O que está marcando a lápis, com tanta fúria?” Contornando com a lenha a mesa do escritório, deu uma olhada para baixo, por trás do ombro do leitor. Sobre a mesa, estavam os livrinhos de Iúri Andreevitch, da primeira edição, impressos por Vácia na Escola Poligráfica.

Mas voltando aos principais símbolos do livro, ainda temos Antipov, convertido em Strelnikov.

Strelnikov (Tom Courtenay) na adaptação de 1965.

Strelnikov parece simbolizar a revolução, ou antes a classe revolucionária, os revolucionários da Rússia, com quem ela se casa tentando escapar daqueles que a corromperam. Cabe apontar que Pasternak não pinta Strelnikov como uma pessoa ruim. Tanto Iúri, quanto Lara têm muito respeito por ele. Ele é pintado como uma pessoa de bom coração, porém endurecida, como se vê no seguinte trecho:

Considerava a vida uma grande arena onde as pessoas, obedecendo escrupulosamente às regras, competem para alcançar a perfeição.

Quando compreendeu que não funcionava assim, ele não se deu conta de que estava errado ao simplificar a ordem das coisas. Alimentou a mágoa recolhida durante muito tempo e, com ela, a ambição de se tornar o árbitro entre a vida e as forças obscuras que a deturpam, de sair em sua defesa e vingar-se por ela.

Então, para fugir aos seus corruptores, a Rússia casa-se com uma revolução, com os revolucionários. Essa classe, sofrida, enganada, que não conseguiu encontrar consolo na própria inteligência, procura um sentido na guerra e apanha dela a tal ponto que chega a mudar de identidade, a receber um novo nome. Convertido, endurecido, apesar do interior macio, ele acaba cometendo atrocidades horríveis, e perdendo sua amada de vista para perseguir processos que viram fins em si mesmos. Esses processos em que os revolucionários se enredam acaba atraindo para eles mesmos seu fim, e eles morrem pelas próprias mãos.

Eis o que tenho a dizer: lembra-se da noite em que você trouxe um folheto com os primeiros decretos? Era inverno, durante uma nevasca. Lembra como tudo era incondicionalmente sem precedentes? Essa rigidez conquistava. Mas essas coisas vivem com toda sua pureza original somente nas cabeças de seus criadores e apenas no primeiro dia de sua proclamação. A hipocrisia da política vira-as pelo avesso, no dia seguinte.

No fim, Lara não fica nem com a vida e nem com a revolução, mas volta para o patife que primeiro a possuíra. Por esse prisma, o livro chega a ser profético, porque de fato os revolucionários fizeram tanta bagunça, se desencaminharam tanto, foram tão fundo na intenção de se tornarem dignos da Rússia que acabaram por abandoná-la, deixá-la crescer ao Deus-dará com seus filhos e na mão dos amantes. Os amantes, isto é, a força de vida que a Lara-Rússia tanto amava também não teve vigor suficiente para mantê-la ao seu lado e protegê-la. Pensando em sua descendência, Lara-Rússia não podia se entregar à rotina idílica de não pensar no amanhã, e acaba voltando para os espertalhões que há muito se aproveitavam dela.

Essa é uma das perspectivas para se analisar o livro. Não é definitiva. Fica o convite para deixar um comentário, se você já tiver lido o livro, dizendo o que pensa dessas comparações.

E para quem ainda não leu, deixo um pequeno bônus. Pela primeira vez na vida, me vi obrigada a fazer uma lista de personagens para não me perder numa leitura, para reconhecer aqueles que são citados brevemente aqui, e só reaparecem cinquenta páginas depois. Já que tinha tido todo aquele trabalho, antes de jogar a lista no lixo, transplantei-a para um esqueminha de personagens que você pode baixar aqui, e usar de auxílio para quando decidir ler Doutor Jivago.

Só para dar uma espiada na complexidade do livro.

Boa leitura e até a próxima resenha.

[1] Tolstói tinha hábitos lascivos com os quais lutou por boa parte da vida. Seu posicionamento moral a respeito do assunto sexo e casamento, por outro lado, era bastante rígido, principalmente quando ficou mais velho, como pode ser verificado, por exemplo, no livro A Sonata a Kreutzer.

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Érika Batista

Escritora, leitora, e tradutora. Conheça meus livros, projetos, portfolio e redes sociais em https://linktr.ee/erika.sbat