Negócio da China

Érika Batista
7 min readJul 1, 2021

Um conto.

O lugar era limpo, imaculado. Tinha até uma sinetinha na porta, para estarem sempre atentos ao vai e vem dos clientes. Não era a aparência respeitável que fazia a fama da agência Negócio da China, mas seus resultados. Era conhecida por conseguir as propostas mais vantajosas da cidade.

Waldemar viu o cliente-perfeito, cruzando a porta. Cara de dentista do comercial da Colgate, cabelos grisalhos e curtos, jeans e camisa social de listras. Ele já tinha estado ali, e fechado negócios rentáveis. Aquele homem não poupava… tanto assim. Se Waldemar queria a comissão do mês, precisava atendê-lo.

– É meu! — ele gritou num sussurro para os colegas atrás do balcão, que atendiam outros homens de negócios promissores, antes de correr para a entrada e apertar a mão do cliente-perfeito assim que o segundo pé dele pousou no tapete da agência.

– Bom dia, Dr. Roberto! O que vai ser hoje?

– O mesmo de sempre — o doutor-sem-doutorado respondeu, com um sorriso simpático. — Recepcionista. Não duram, sabe como é, é difícil encontrar quem saiba valorizar.

– Com certeza. E você pensaria que haveria mais, na atual conjuntura…

– Conjuntura? Gostei de ver, educação continuada da equipe, aqui a coisa é profissional mesmo.

– Sem dúvida, Dr. Roberto.

– Bom, vamos direto ao ponto, então? Quem sabe dessa vez consigo um produto durável.

– Vamos, claro, por aqui — e ele fez sinal para o cliente, conduzindo-o pelo piso de ladrilhos escuros e miúdos do primeiro corredor. — Creio que encontraremos algo adequado. Recebemos um estoque bem amplo na semana passada. Sabe como é, a crise. Melhores tempos para os negócios.

– Melhores desculpas — o outro aprovou com um aceno.

– Venha, venha por aqui. Nessa sala temos umas candidatas de currículo ótimo…

O cliente segurou o braço do vendedor antes que ele sequer virasse a maçaneta.

Candidata? Mulher?

– Bem, sim. Sabemos que o senhor gosta de economizar, as mulheres são mais baratas.

– Às vezes o barato sai caro, meu amigo. Melhor não.

– Mas ganham menos.

– Tem mais é que ganhar menos, engravidam. Isso dá um rolo…

– É… tem umas desvantagens… Pelo menos agora podem trabalhar em ambiente insalubre, o senhor não soube?

– Ah é? Bom, mesmo assim. Vamos deixar em último caso. Se não der certo dessa vez…

– Nem uma olhadinha?

Mas o cliente já seguia adiante para a próxima sala, e Waldemar só pode correr para alcançá-lo.

– Aqui tem o quê? — ele apontava para a próxima sala.

– A galera da experiência.

– Continuam com aqueles preços absurdos?

– Continuam, infelizmente.

– É uma falta de semancol…

– Nada que um período encalhados na sala não resolva. O tempo passa para todos, né.

– Sim, e as contas chegam. Graças aos céus por elas. Botar juízo na cabeça desses ousados.

– Vamos para a próxima?

– Sim, sim, me conduza. Vi que vocês mudaram um pouco as configurações aqui…

– De fato, eliminamos aquela progressão; com as novas regras, fica meio equivalente contratar qualquer um, é só uma questão de barganhar.

– E como é que a gente vai saber as melhores ofertas?

Waldemar estendeu um sorriso lisonjeiro.

– Para isso nós vendedores estamos aqui.

E, continuando em solicitude, ele caminhou para outra porta, abriu-a, e acenou para o cliente entrar na sua frente.

A sala era quase tão branca quanto o corredor. Se constituía de duas partes: uma pequena antessala com uma janela, daquele tipo de cela de interrogatório de série americana, e um ambiente maior, onde uns cinco homens de idades diversas e aspecto igualmente entediado estavam de pé, virados para a janela-espelho, a uma distância regular um do outro. Um botão vermelho ao lado da porta, apertado discretamente por Waldemar, fez soar um apito na sala interior, inaudível na antessala, e de repente os homens se endireitaram, enfeitando suas caras com sorrisos precários e ares empolgados.

O cliente não lhes prestou a mínima atenção. Examinava os currículos que repousavam na mesinha em frente à janela, alinhados perfeitamente com cada candidato. Ele passou direto pelos “comunicativo, dinâmico, proativo” e as besteiras de praxe, procurando o que lhe interessava, e estalou a língua, desaprovador.

– Nem um curso de Excel, Waldemar?

O vendedor encolheu os ombros, constrangido.

– Essa é a sala de liquidação, senhor.

– Bem, mas mesmo assim. Como é que querem ganhar um salário mínimo inteiro sem nem ter cursinho de inglês? Sem condições. E a reputação da empresa, fica onde?

– O senhor ingressou no ramo da hotelaria, Dr. Roberto? — Waldemar deixou escapar a pergunta, e logo quis enrolar a língua e engoli-la: o que tinha ele que dar palpite nos negócios do cliente, sugerir as qualificações que ele deveria buscar?

Roberto censurou-o com o olhar pelo atrevimento, antes de balbuciar:

– Não, ainda é a loja de ferragens. Mas e se chega um gringo?

– Tem razão, Dr. Roberto. Vamos adiante — anuiu Waldemar, louvando-se mentalmente por ter tido o tino de nem sugerir a sala do pessoal sem ensino médio completo. Deliciosamente baratos e pouco exigentes, mas Dr. Roberto era um cliente fresco, tinha certos padrões de qualidade que seria ofensivo pretender quebrar.

Assim eles passaram por sala após sala, mas sempre havia um porém. Aquele participava de greves, o outro era sindicalizado, o terceiro compartilhava publicações de esquerda nas redes sociais… Roberto tinha que admitir que o trabalho de investigação da agência na formação da ficha era excelente! Eles até conseguiram a lista dos que tinham um passado com a Justiça Trabalhista. Dados sigilosos, claro — mas no Negócio da China eles levavam o direito à informação do consumidor a sério!

E tinham contatos nos lugares certos.

Roberto se apaixonou e ia quase levando um homem de uns trinta anos com aparência de quarenta, visivelmente acostumado a se acomodar a posições piores do que teria direito. Mas aí desconfiou, quis saber as origens daquele hábito. Waldemar teve que confessar que o produto era um pai de família. Roberto suspirou, desapontado. Um candidato tão promissor… Dessa vez não ia dar. Ele conhecia bem pais de família. Tinham esposas que ficavam pressionando para que pedissem aumento. Não valia a incomodação. Mas quem sabe dali a seis meses? Nem a esposa ousaria ficar cheia das condições sine qua non.

Quase desesperado, vendo a comissão escapar por entre os seus dedos, Waldemar abriu a última sala. Aqueles ali não valiam muito em termos de gorjeta; para cada um vendido, chegavam mais dez. Mas antes isso que nada.

Novo espaço separado em dois ambientes por uma janela-espelho surgiu diante dos olhos deles, quando Waldemar acionou o interruptor. Os candidatos se empertigaram de imediato, sem necessidade do sinal de aviso. Intuíam a presença de um cliente. Eram todos mais ou menos jovens, alguns com a cara cheia de espinhas, vários dependendo de antidepressivos. Uns poucos ainda guardavam os tiques nervosos que tinham ganhado de brinde na faculdade.

A sala dos recém-formados. Administração, direito, licenciaturas… se desse sorte, se conseguia até um de medicina encalhado ali, mas eram raros. Roberto era frequentador da Negócio da China, e conseguiu reconhecer os produtos com um mero olhar. Desinteressou-se rapidamente dos currículos; brilhantes, sabia, diploma de faculdade, uns quantos artigos científicos, tinha até estágio e monitoria em alguns. Aquela sala era garantida. Seu rosto se animou, e pediu para ver a mercadoria mais de perto. Waldemar tirou uma chave do bolso, e abriu a porta de comunicação.

Eles passaram à sala maior.

Ah, o cheiro de medo e insegurança! Roberto quase podia ouvir ao fundo as mães daqueles jovenzinhos mandando eles arrumarem um emprego. Estavam no ponto.

Enquanto Roberto olhava em volta, atordoado, indeciso sobre qual abordar, Waldemar lembrou-se. O seu trunfo! Pegou o cliente pelo pulso, de tão animado, e o arrastou até o fundo da sala. Um rapaz miúdo e gorduchinho, de óculos grossos, estava postado quase no canto, numa postura confusa entre encolhido e aprumado.

– Deixe eu lhe apresentar o que temos de melhor: formado em faculdade à distância, desempregado há três anos — não se preocupe, ele se trata pelo SUS — não tem boca para nada, acredita no mito de crescer na empresa, e, aí vem o melhor! Acha que ainda não conseguiu uma colocação porque não se esforçou o bastante.

Os olhos de Roberto chegaram a brilhar.

– Perfeito! Exatamente o que eu estava procurando. Por que não me apresentou ele desde o começo, Waldemar? — ele bronqueou, de bom-humor. — Sim, sim, esse vai durar. Só espero que a mãe seja razoável. Mães protetoras você sabe como é, né.

– Ele é órfão de mãe, doutor. E o pai é… um tanto severo.

– E você me escondendo este ouro até agora! Tudo bem, vou te perdoar: é o teu trabalho tentar nos empurrar todo o estoque — Roberto acenou com uma mão, enquanto andava em torno da vítima, isto é, do produto, examinando-o. — O que está esperando? Me traz logo o contrato de experiência. Vocês ainda trabalham com aquele regime de três meses de garantia?

– Sim, senhor, até está dando pra negociar umas condições mais favoráveis. As mudanças foram excelentes, o mercado estava mesmo precisando de renovação. Tudo negociável, mais liberdade, é muito melhor assim, o senhor não acha?

– Com certeza. Agora vai pegar os documentos. Não posso perder este exemplar.

Mas Waldemar não se mexeu. Odiava-se por ser um funcionário tão consciencioso, mas não podia deixar o cliente levar o produto sem saber tudo sobre ele. E havia um pequeno detalhe sobre aquele moço… Ele não podia omitir. Seria descoberto logo e ainda sujaria a imagem da empresa. Waldemar suspirou, contendo o medo de perder a venda, e balbuciou à meia voz:

– Ele é ótimo, mesmo. Só tem um pequeno defeito…

O vendedor parecia constrangido. Não olhava nos olhos do cliente. Este trocou o tom condescendente de toda a visita por um mais severo.

– Hum, defeito, é? E o que seria?

– …ele come.

– Aaaaah, Waldemar, assim tu me quebra!

Dois manequins, um preto e um dourado, contra fundo cinza, e o título “Negócio da China” por cima, centralizado, em letras brancas retas e vermelhas estilizadas. Um pouco menor, o nome da autora, Érika Batista, em letras brancas retas no rodapé da página.

Nota por via das dúvidas: O nome deste conto deriva unicamente da expressão consagrada na língua portuguesa. A história não tem nenhuma relação com o país China.

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Érika Batista

Escritora, leitora, e tradutora. Conheça meus livros, projetos, portfolio e redes sociais em https://linktr.ee/erika.sbat