O deserto da chatice
Sobre a tomada, mercantilização e entediamento da internet
Não sei vocês, mas eu não tenho mais vontade de mexer em redes sociais, e a internet em si também não me empolga mais tanto.
Uso um ou dois chats para falar com minha família imediata, namorado e um ou outro amigos próximos, e pra trabalho e burocracias do dia a dia. Visito sites dos meus interesses pessoais conforme necessário. O resto do tempo, eu uso o YouTube como usaria um barulho de fundo para acompanhar outras atividades.
Em parte, esse desinteresse deve ter surgido porque me tornei chata e cansada devido a uma combinação de dificuldades pessoais, minha própria personalidade, e uma sucessão de eventos traumáticos de escala local e global que dividiu a humanidade e pôs boa parte dela em crise existencial e na beira do desespero quanto ao futuro.
Mas o esfriamento dessa relação entre eu e a internet não está apenas no sujeito (eu) neste caso. Após meditar sobre coisas que tenho observado, me parece que o objeto (a internet) perdeu uma parte das qualidades que o tornavam atraente para mim (e, talvez, para você e muitos outros).
Essas conclusões vêm de evidências empíricas, e para situá-las, preciso delimitar o tempo que passei observando a internet.
Minha adolescência se deu nos anos 2000, e não cresci exatamente com internet em casa, mas sempre dava um jeito de acessá-la da biblioteca pública, da escola ou de alguma lan house. Então, eu tinha MSN e Orkut, mas quase não usava; acessava principalmente sites de fanfic, fóruns sobre literatura e escrita em geral, em especial blogs sobre concursos literários, e outras coisas do meu interesse.
Nos anos 2010, coloquei internet em casa, e, acessando-a com mais frequência, passei a participar mais de redes sociais. A rede social que mais usei na vida foi o Facebook. Ali participei muito de grupos: sobre idiomas, religião, literatura e escrita, russo, beleza e estilo e, mais recentemente, tricô.
Também tive algumas páginas, principalmente a Literatura Russa para Brasileiros, que eu usava para divulgar literatura russa, em especial as traduções que fazia e resenhas dos livros russos que lia. Essa página logo ganhou um blog correspondente, onde eu postava os textos mais extensos. A era dos blogs enquanto sites autônomos já estava no seu declínio, por isso, eu fazia os posts e compartilhava o link na página, para que as pessoas vissem. Mais tarde, a página também ganhou um instagram.
Tudo isso foi relevante porque essa atividade em múltiplas frontes me permitiu ver as mudanças acontecendo em todas elas. Sem descer às datas exatas em que cada coisinha diferente foi implementada, poderíamos dividir o caminho da internet dos anos 2000 até hoje em algumas eras, que muitas vezes se sobrepuseram em vez de se suceder, e às vezes chegaram às diferentes partes do mundo um pouco mais cedo ou mais tarde.
Anos 2000: A era dos fóruns e sites ou blogs pessoais ou A era do texto
O espírito de debate livre de ideias e difusão do conhecimento deu o tom dessa época.
As discussões se davam em fóruns ou seções semelhantes de sites especializados em algum assunto, em geral mantidos por voluntários dedicados àquele assunto, com moderadores voluntários também.
As informações estavam em sites estacionários, em geral programados em um html rudimentar pela própria pessoa que os montava.
O compartilhamento de imagens era rudimentar também e o de arquivos de áudio, texto, vídeo, etc., mais complicado, mas a disposição para compartilhar as informações de forma gratuita e melhorar o funcionamento da internet era alta, voluntária, e de certa forma idealista, revestida de certo altruísmo.
As compras pela internet eram limitadas, os anúncios também (geralmente, de coisas meio escusas), a segurança era complicada, mas a maior ameaça eram vírus.
A internet dessa época era feinha e com organização precária: você trombava com sites em Comic Sans e bordas onduladas em amarelo sobre fundo azul, porque era o que a pessoa que tinha programado o site achava bonitinho, e tinha a maior dificuldade em encontrar ou reencontrar alguma informação usando as ferramentas de pesquisa disponíveis. Às vezes, precisava usar a palavra-chave exata para que o Google te devolvesse aquilo que você queria.
Tudo isso foi evoluindo e mudando ao longo da década. Surgiram nuvens como o Mega, o finado 4Shared e outros sites semelhantes, que facilitavam compartilhamento de arquivo. Alguns sites incorporaram a possibilidade de compartilhar imagens sem precisar hospedá-las em outro serviço e usar links. As ferramentas de busca foram se refinando. Governos, universidades e outras instituições públicas instituíram iniciativas para disponibilizar material de interesse público online, o que foi uma maravilha para pesquisadores em geral.
Surgiram plataformas como o Blogspot / Blogger ou o Wordpress, que permitiam que a pessoa criasse sites mais padronizados de acordo com funcionalidades e conjuntos de personalização pré-preparados pelos profissionais que desenvolveram essas plataformas. Repare que os blogs hospedados ali já não eram sites 100% próprios! Isso foi o primeiro passo para um movimento que viria a se consolidar na era das redes sociais, na década seguinte.
Anos 2010: A era das redes sociais ou A era da imagem
É verdade que a maioria das redes sociais que permanecem até hoje surgiram na década de 2000: Facebook em 2004, Twitter e VKontakte em 2006, WhatsApp em 2009. Vale dizer que todas elas eram redes baseadas em texto, conforme o espírito da época anterior. Havia quem preferia as máximas de 140 caracteres do Twitter, e outros, os textões do Facebook. Mas todas essas redes atingiram seu pico na década de 2010, com 2010 sendo ano em que o Twitter atingiu 50 milhões de publicações diárias e 2012, o ano em que o Facebook atingiu 1 bilhão de usuários logados, seu máximo até então. Ao fim da década de 2010, as redes sociais e sites afins tinham atingindo o pico da sua relevância e da sua influência na sociedade.
Essas redes já vinham operando uma mudança na forma como a internet funcionava: prometendo reunir todos os seus amigos ali, te permitiam falar com todos ao mesmo tempo, e depois com estranhos que comungavam dos mesmos interesses.
Os Grupos do Facebook sugaram muitos fóruns para dentro do site, já que criar posts, comentar neles e, mais tarde, compartilhar arquivos e pesquisar o que já tinha sido postado ali antes era mais fácil do que costumava ser nos antigos fóruns. Também sugaram muitos sites e blogs pessoais ao oferecer a funcionalidade das páginas, igualmente bem mais práticas em comparação com desenvolver o próprio site ou mesmo o próprio blog em sites de hospedagem.
Ao fazer isso, o Facebook drenou a internet de muita coisa que estava espalhada por aí e concentrou um montão de conhecimento outrora espalhado neste site cujo controle pertence a uma única empresa privada.
(Não vou nem entrar na parte sobre o que ele faz com nossos dados e o conhecimento compartilhado ali. Mas vale ressaltar outra funcionalidade que surgiu nessa época e tem relação com isso: fazer login em sites de terceiros com o Facebook e, depois, com o Google).
Então, em 2010 surgiu o Instagram, seguido do Snapchat em 2013, e eles ditaram mudanças a que até as outras redes tiveram que se submeter, e redirecionaram a internet para se tornar uma rede baseada em imagens ao invés de texto.
Imagens esteticamente bonitas, memes, gifs ou emojis — hoje ninguém duvida que elas dominam até mesmo os chats em texto. Se mensagens de áudio têm recepção dúbia, as imagens são universalmente aceitas e inevitáveis.
As redes de texto foram, pouco a pouco, incorporando imagens, dando mais valor a posts que a continham (e aqui aparecem os primeiros sinais de algo que viraria um pesadelo na década seguinte: o algoritmo), e logo o texto saiu de moda. Ninguém tinha paciência para ler. No máximo tweets.
O estrago que “não ter paciência para ler” fez na internet, na cabeça e na atenção das pessoas e, consequentemente, na realidade social, é difícil de mensurar e mais ainda de reverter.
Uma das principais consequências dessa mudança foi tornar o conhecimento compartilhado (e consumido) na internet majoritariamente mais raso, pelo foco na aparência (não só de pessoas) e pela rapidez do consumo (que nem sempre corresponde à rapidez da produção, diga-se). Também se pode arguir que ela o tornou mais falso, pois é muito mais tranquilo criar e sustentar uma ideia falsa se apenas a mostrarmos sem abrir a boca, se não precisarmos nos aprofundar em nada para defendê-la, não a expusermos ao debate.
Anos 2020: A era do vídeo, do algoritmo e da instrumentalização
Uma contraposição à rejeição ao texto foi a inflamação do interesse pelos vídeos que, embora sempre tenha existido, forneciam agora: a) um conteúdo mais duradouro e, por vezes, mais aprofundado que uma foto; b) um conteúdo com um elemento de imagem, ainda assim, mas cujo movimento fazia prender a atenção por mais tempo (algo que já estava se tornando importante); c) uma forma de substituir os tutoriais em texto, que hoje em dia são minoria em relação aos de vídeo; entre outros pontos.
Quando os anos 2020 chegaram, os equipamentos tecnológicos que tínhamos já estavam mais capacitados para criar vídeos, o que favoreceu uma nova mudança no formato de conteúdo (guarde essa palavra!) majoritariamente consumido.
Os vídeos passaram a ser favorecidos pelo algoritmo em todas as redes sociais, e reduzir em duração para acompanhar a redução da nossa capacidade de concentração. Ou então, em alguns casos, aumentaram descomunalmente, ganhando a duração de filmes ou séries, para acomodarem vários anúncios no seu decorrer, e ficarem rodando como pano de fundo, fazendo companhia para os humanos solitários presos em casa entre 2020 e 2021.
Já falei de como as redes sociais concentraram em si o que antes estava espalhado pela internet. Isso já fez com que as pessoas direcionassem seu tempo online para alguma(s) dessa(s) redes. Tendo a atenção das pessoas, as redes sociais passaram a vendê-la a anunciantes, pois no capitalismo tudo vira commodity, tudo vira produto de venda.
Então os poucos donos em cujas mãos tinha se concentrado uma larga fatia da internet começaram a se digladiar entre si, começando a comprar as empresas uns dos outros ou copiar as funcionalidades umas das outras, na tentativa de reter as pessoas na sua rede pelo máximo de tempo possível.
Isso gerou uma mesmice gigante daquilo que havia de disponível na internet, pois todas as redes buscam oferecer aquilo que está agradando mais no momento.
A variedade enorme da internet já começou a morrer aí. Outro prego no seu caixão foi o refinamento dos algoritmos. Se, de início, eles visavam organizar melhor a internet, sua evolução foi refinar-se para permitir uma hierarquia do que seria mostrado a cada um para manter as pessoas mais tempo na rede, ou para fazê-las comprar determinado produto. O produto podia ser qualquer coisa: uma caneca, uma camiseta, um candidato…
Logo, a internet se tornou involuntariamente personalizada. Não somos nós mesmos os responsáveis pela personalização: os algoritmos captam o que digitamos (ou falamos) e nos mostram o que acham que se adequa mais a nós, de acordo com seus interesses. Hoje as pessoas não acessam mais a mesma internet, como no começo. Cada um tem sua internet pessoal — e quase nenhum controle sobre o que ela contém.
Se no início da década de 2010, as redes sociais foram importante ferramenta de união política em torno de objetivos comuns, com integrantes da Primavera Árabe (2010–2012) e dos protestos na Maidan ucraniana (2014) usando-as para articular seus movimentos, no final da mesma década e no início da de 2020, devido à intervenção do algoritmo e da consequente possibilidade de manipulá-lo, as redes sociais foram importante fator de divisão das populações, favoreceram a radicalização política e a ascensão de governos de extrema direita em todo o mundo.
A partir do momento que a internet pôde se controlada por meio da hierarquização dos posts, algumas pessoas e empresas perceberam como podiam estudar os critérios usados para essa hierarquização e empregá-los em seu favor.
Assim surgiram a criação de conteúdo profissionalizada, o SEO, o marketing digital, o profissional de social mídia, os cursos de como fazer sucesso na internet… Nada sólido e que ofereça conhecimentos duradouros, pois as pessoas que ensinam a lidar com o algoritmo não controlam esse algoritmo, são como meteorólogos observando o tempo. O máximo que podem fazer é nos dizer que amanhã vai chover e é melhor levar guarda-chuva. Mas depois de amanhã pode ser diferente…
A profissionalização no uso das redes sociais as converteu paulatinamente de ambientes de lazer e socialização em ambientes profissionais. Se no início alguns profissionais de certas categorias usavam-nas profissionalmente para sair na frente na competição, logo “ter presença online” tornou-se obrigatório para a sobrevivência nessas categorias. A pessoa trabalha durante o dia e tem que trabalhar para as redes sociais no tempo livre, para permanecer visível, relevante, ser visto como competente na sua área, não ser esquecido, conquistar público próprio… O profissional ultra independente do século XXI, que é seu próprio chefe, mas no fundo trabalha para quinze empresas que não o assumem como empregado, incluindo as redes sociais.
Tudo isso tirou a graça da internet.
Hoje tudo e todo mundo nela é vendido ou vendável.
Até os vídeos curtos humorísticos, que é onde as pessoas tinham vindo refugiar as cabeças exaustas, em busca de lazer. Os tiktokers de comédia provavelmente lideram a lista dos preferidos dos anunciantes.
O espírito do capitalismo destronou o espírito do altruísmo que reinava na internet em seus primórdios. Conhecimentos e informações outrora compartilhados livremente hoje são vendidos. E nem sempre dá para culpar os vendedores: os depauperados das gerações Y e Z não têm mais nada de seu que possam vender para se sustentar a não ser conhecimento, mesmo. Ou é isso, ou é vender o corpo (mercadoria que a internet também abrangeu).
Porém, é provável que o próprio capitalismo cause a implosão da configuração atual da internet e, se soubermos nos aproveitar disso, podemos restaurar pelo menos um pouco do potencial antigo dela.
Para onde vamos: A era da IA
O influenciador e o criador de conteúdo são duas profissões extremamente recentes, nascidas nesse movimento de profissionalização da internet sobre o qual acabei de falar.
“Influenciador” é um sincericídio encantador que desumaniza quem os segue e não deixa qualquer dúvida sobre a função única de vender produtos ou ideias que essa pessoa tem, e, portanto, sua ligação intrínseca com o capitalismo (mesmo dos “influenciadores comunistas”).
Por sua vez, o “criador de conteúdo” é outro nome revelador, embora requeira um pouco mais de reflexão para compreendermos por completo suas implicações. Acontece que o termo conteúdo, com o sentido que tem hoje quando falamos de internet, diz muito sobre o estado dela hoje.
O conteúdo é sempre conteúdo de algo, isto é, o conteúdo de um pote, de um livro, de um discurso. O objeto que o contém é uma condição para a existência de conteúdo, já que, sem ele, esse conteúdo não seria conteúdo, mas apenas a coisa em si (o feijão não seria o conteúdo do pote de sorvete se não estivesse no pote de sorvete, seria apenas “feijão”). E quando falamos dessa coisa chamando-a de “conteúdo de…”, damos protagonismo não a isso que compõe o conteúdo, mas ao recipiente que o contém. Dizer “o conteúdo do pote de sorvete” coloca a importância no pote de sorvete, não importa o que haja dentro dele, pois esse conteúdo pode ser sorvete, feijão, gelo, maracujá, meias…
Da mesma forma, quando tratamos as informações e conhecimentos que são compartilhadas na internet por “conteúdo” e quando nos denominamos “criadores de conteúdo”, tiramos toda a importância das informações e conhecimentos em si, de nós mesmos, e colocamos essa importância no recipiente, na estrutura, no arcabouço que contém esse “conteúdo”.
Essa desimportância relativa do criador e do próprio conteúdo não passou despercebida para o pessoal da Big Tech. Mas, assim como ninguém liga para um pote vazio ou para um livro em branco, o conteúdo, algum conteúdo, é indispensável para que as pessoas acessem as redes.
Por isso, os controladores do algoritmo estavam dispostos a premiar de alguma forma criadores de conteúdo que retivessem a atenção de pessoas nas respectivas plataformas. Esse prêmio podia vir com mais atenção ou, mais raramente, como dinheiro (monetização), e servia de estímulo para que essas pessoas continuassem observando as tendências e camelando para fazer com que você não largasse o celular.
Sem nem entrar muito fundo na questão do trabalho não-remunerado (pois a maioria esmagadora dos criadores do mundo não recebe nada de remuneração e nem cobre os gastos com a produção do conteúdo), basta dizer que, com a abundância crescente de criadores, já que qualquer um pode ter uma página em rede X ou um canal na rede W, o prêmio disponível para compensar os criadores não se alterou muito e foi sendo rateado em parcelas cada vez menores. É um pouco parecido com o que aconteceu com Uber, iFood e afins à medida em que mais motoristas e entregadores se cadastraram para trabalhar usando esses aplicativos.
Sendo uma iniciativa unilateral das redes e não algo sacramentado em um contrato, que pudesse ser fiscalizado pela Justiça, o Ministério do Trabalhou ou outras agências governamentais, nada impede que as empresas suspendam por inteiro essa contrapartida que oferecem, reduzam-na a valores risíveis, ou simplesmente mudem a qualquer hora os critérios para sua concessão, obrigando os criadores de conteúdo a ficar reajustando seu comportamento para tentar escapar das restrições.
É uma coisa que acontece com frequência no YouTube, que restringiu certos assuntos ou palavras que atraem muita atenção e muitos usuários para a plataforma, desmonetiza os vídeos que usem essas palavras ou tratem desses assuntos, mas os mantém no site, continua exibindo esses vídeos e colocando anúncios neles (ou seja, lucrando com eles). A plataforma pode dar justificativas válidas para restringir a monetização, como quando impediram de monetizar vídeos que falavam do COVID durante a pandemia, para desestimular a propagação de informações falsas sobre o tema — mas nem sempre essas justificativas são verdade ou são usadas de forma racional. É comum ver YouTubers que fazem resenhas de filmes, livros, ainda mais de True Crime (assunto super popular no site e que certamente gera muita receita em anúncios) evitar usar palavras como “assassinato” e outros nomes de crimes, para não perder a monetização.
Por isso, vemos cada vez mais YouTubers recorrendo a solicitações de apoio direto por parte dos subscritores dos seus canais, pois, se dependessem só do que recebem do YouTube, o trabalho ali não compensaria. Antes, usavam plataformas como Ko-Fi, Apoia-se ou Patreon, mas agora o próprio YouTube criou a função “Membros” e outros recursos para que o criador receba diretamente dos seus seguidores. É uma forma de terceirizar os custos da criação de conteúdo, e ainda criar privilégios baseados em nível de riqueza, o que não pode faltar no capitalismo, não é mesmo? O criador pode oferecer até cinco níveis de assinaturas e, em geral, deve criar conteúdo extra para cada camada, já que alguém que paga bastante tem que se sentir superior e exclusivo de alguma forma, para justificar o preço mais alto. Se, antes, todo o conteúdo dos canais era gratuito para qualquer subscritor e pagávamos a conta com atenção, agora isso já não basta.
Essa situação, bem como a falta de controle sobre as oscilações do algoritmo, que faz com que metade dos subscritores de um YouTuber possam nem sequer ver seus novos vídeos, tem começado a fazer com que essas pessoas ou empresas tentem deixar a plataforma de vez e migrar para um serviço de assinaturas próprio, se têm estrutura para tanto.
Por enquanto, tais iniciativas não parecem ter tido sucesso, para alívio do YouTube. Isso porque elas entram na onda de outro movimento da internet atual que tem irritado profundamente as pessoas: os serviços de streaming que se multiplicam.
Antes, no vácuo entre a era das locadoras e a era da Netflix, se a pessoa queria ver um filme ou série, ela baixava esse filme ou série. Um ou outro assinava TV a cabo, mas mesmo assim ficavam limitados ao cardápio do que aqueles canais tinham para oferecer, e quando não havia o film ou série que queria na TV, procuravam na internet e faziam o download. Não é à toa que dizem que uma das poucas instituições de sucesso do Brasil é a indústria da legendagem voluntária.
No mesmo movimento da “organização” da internet que fez as redes sociais sugarem os fóruns e páginas pessoais para dentro delas, a Netflix surgiu para organizar os filmes e séries disponíveis e oferecer a possibilidade de alguém assistir vários por um valor baixo e sem o risco de acabar com o próprio HD baixando algum vírus escondido. Apelando para a preguiça das pessoas, a Netflix conseguiu fazer o que muitas leis criminais não conseguiram: reduzir radicalmente a pirataria.
Mas acontece que a Netflix foi manipulando o próprio catálogo e removendo títulos populares, pelos quais precisava pagar royalties, e substituindo por suas próprias produções de gosto duvidoso, comprando séries independentes para arruiná-las, e outras empresas detentoras de títulos clássicos e cobiçados pensaram “Para quê ceder os direitos para ela se podemos fazer nossa própria locadora aqui?”. Assim surgiram Amazon Prime, HBO Max, Globoplay, Starplus e etc. etc. etc.
O resultado é que se a pessoa quer ver três ou quatro filmes diferentes hoje, ela precisa assinar três ou quatro serviços diferentes, pagando muito mais do que pagaria para alugar o filme antigamente ou assisti-los no cinema.
Resultado: as pessoas estão voltando para a pirataria.
E é por essas e outras que eu acho que a gana de ganhar muito sem remunerar ninguém, que as grandes empresas de tecnologia exibem na sua forma mais refinada, acabará por explodir no colo delas.
Todo o sistema de influenciadores de que dependia a arrecadação por anúncios repousa na confiança que esses indivíduos conquistaram com seus seguidores. A projeção social desses indivíduos tinha certos símbolos que serviam de atestado da sua importância, e sustentavam a dita confiança. Ora, quando as empresas começam a vender esses mesmos símbolos a quem quiser pagar por eles, eles perdem o significado, e as pessoas não sabem em quem confiar e param de dar crédito aos influenciadores como um todo.
A má vontade em retribuir aos criadores de conteúdo, que já referi acima, tem se evidenciado cada vez mais desde o recente aperfeiçoamento dos mecanismos de inteligência artificial, como ChatGPT, Midjourney, etc. Ninguém consegue se adequar tão bem aos algoritmos, produzindo conteúdos 100% alinhados com “o que funciona”, quanto um robô. O resultado é que o Twitter e as empresas do Meta (Facebook e Instagram) estão com os feeds lotados de imagens e textos gerados por inteligência artificial, mostrando para todo mundo indiscriminadamente vídeos de gatinhos e animais fofos, conteúdo de incel ou conteúdo político inflamatório, memes de subtexto sexual e imagens bizarras de Jesus esculpido em tudo quanto é material. Ver o que nossos amigos ou pessoas que um dia nós seguimos estão postando? De jeito nenhum. A menos que eles estejam postando essas coisas aí. É com esses conteúdos que eles preenchem os buracos entre os anúncios agora.
E é por isso que eu estou entediada com a internet. E é possível que você talvez esteja. Quem é que quer ver essas coisas de fato? Ninguém mais está nas redes sociais, todo mundo as usa com o chat desativado, só vamos lá para olhar memes a essa altura, e não está valendo a pena. A audiência delas vai acabar declinando, e logo essas redes serão povoados por robôs dialogando com robôs. Vi um vídeo sobre isso esses dias que vale recomendar:
E o que a gente faz agora? Abandonamos a internet aos robôs? Largamos tudo e vamos viver na floresta? (Tentador… enquanto ainda há floresta…)
Sugiro que a aproveitemos construir uma relação mais saudável com a internet, e então, retomá-la.
Estou apenas começando a refletir sobre esse assunto. Isto é, sobre as soluções, os problemas eu já vejo faz tempo. Por isso, não tenho muito a acrescentar ou especificar sobre como se daria essa retomada da internet, exceto que ela começaria por retomarmos o controle sobre nossa própria atenção.
O vício em celular, que muita gente enfrentou na última década, talvez possa se resolver por conta própria, pelo tédio que a internet nos trará se continuar a funcionar nos moldes atuais.
Aproveitemos essa oportunidade para viver um pouco fora dela, para procurar conhecimento fora dela, em livros, filmes e outras mídias que levam mais tempo para produzir e passam por uma melhor curadoria.
Então, ao voltarmos a visitar a internet, devemos alterar o foco de volta para “o conteúdo”. Que venhamos à internet não para flanar pelas redes e olhar o que há de novo, em busca de entretenimento genérico. Venhamos com um objetivo, como antes, para procurar sobre aqueles assuntos de que a gente gosta. Esses assuntos, nós podemos encontrar em qualquer lugar, e compartilhar o que sabemos sobre eles em qualquer lugar também.
Você quer escrever ou publicar sua arte ou vídeos? Crie seu próprio blog ou site. Recomende blogs e sites de outras pessoas, em vez de páginas nas redes sociais. Visite-os, vá procurar assuntos que te interessam em blogs e sites também. Não nos que existem só para vender um produto e têm aqueles textos mais rasos que uma colher de chá, mas no material produzido por pessoas que realmente se aprofundam nos assuntos.
Espalhando os conteúdos em uma infinidade de blogs e sites dessa forma, poderemos re-atomizar a internet. É possível que isso torne mais difícil localizar as coisas, como nos tempos da internet caótica. Mas também impedirá que todos os materiais que produzimos sejam invisibilizados de uma hora para outra por uma mudança no algoritmo. Ou que o conteúdo desses materiais seja ditado pelo algoritmo, isto é, siga as trends, trate só de assuntos do momento, e não daquilo sobre o que as pessoas realmente querem e podem falar bem.
No mais, estou aberta a sugestões.
Boa semana e até a minha próxima veneta de escrever aqui.