Resenha: Coração de cachorro, Mikhail Bulgákov

Érika Batista
18 min readApr 4, 2020

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Ilustração de Olga Kalafati.

Foi aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo que eu terminei minha leitura do desafio “Um ano de literatura russa” nesse mês que passou. O livro que escolhi para março foi a novela Coração de cachorro, do Bulgákov, também traduzido como Um coração de cachorro e Coração de cão. É verdade, também, que embarquei nele tarde, patinhei um pouco nos capítulos iniciais, mas depois que engrenei na leitura, devorei o livro em três dias.

Sou suspeita para falar, porque amo a escrita do Bulgákov e as situações absurdas típicas das histórias dele, mas achei o livro sensacional. Não é à toa que essa novela é o segundo livro mais popular do autor no seu país de origem, para o que contribuiu um filme soviético de 1988, que tentaremos incluir no finzinho desta resenha se ela já não estiver longa demais.

Há tanta coisa para mencionar que achei conveniente dividir esta resenha em tópicos.

Sobre a obra

O enredo de Coração de cachorro é bastante simples. Um médico e pesquisador adota um cachorro de rua e, ao utilizá-lo em um experimento laboratorial para testar um método de rejuvenescimento do organismo — em especial dos órgãos reprodutores, seu campo de pesquisa — , acaba por transformar o cachorro em gente. Mais especificamente, numa réplica moral do jovem falecido cuja hipófise o cão recebera por transplante.

O livro, escrito entre janeiro e março de 1925, é considerado um panfleto antiproletário, e por isso mesmo ele foi confiscado quando as autoridades soviéticas revistaram a casa de Bulgákov em 1926. Agora, a opinião dos críticos varia sobre quão antiproletário o livro é. A relação de Bulgákov com o poder soviético era complexa, e, por isso, há tanto quem acredite que Coração de cachorro meramente condena a existência do homo sovieticus, pregando um retorno à realidade pré-Revolução, como quem ache que sobram tapas e zombarias para todas as figuras envolvidas.

Apesar de devolvida ao autor, a novela jamais foi publicada durante a vida dele. Havia planos de encená-la em 1926, mas o contrato com o teatro foi rescindido após o confisco da obra pela censura. Existem indícios de que ela tenha circulado clandestinamente desde a década de 1930. Já nos anos 1960, sabe-se que Coração de cachorro circulou no formato de samizdat — cópias datilografadas ou manuscritas repassadas de mão em mão — e, em 1967, uma versão mal copiada, com mais de mil erros e alterações, foi parar no ocidente sem autorização da viúva de Bulgákov, Elena Serguêievna. Em 1968, o livro foi publicado simultaneamente em Frankfurt e em Londres.

Já na URSS, em que as obras de Bulgákov vinham sendo resgatadas desde a década de 1960, Coração de cachorro só teve sua publicação autorizada em 1987, já às vésperas da reestruturação, saindo na revista Znâmia (A bandeira). Essa edição e as posteriores, porém, se basearam na versão defeituosa do texto que fora publicada no ocidente, e só em 1989 saiu uma versão de Coração de cachorro de acordo com o manuscrito de Bulgákov, do qual três cópias ainda estavam conservadas.

Nomes

Nas obras de Bulgákov, é costumeiro que os nomes dos personagens sejam cuidadosamente escolhidos ou criados para efeito humorístico, ou de alguma forma influenciem na mensagem geral da história. A mesma coisa acontece em Coração de cachorro.

Às vezes, os nomes acabam sendo traduzidos, numa tentativa de reproduzir esse efeito. Nem sempre o resultado é bom: uma das traduções desse livro para português traduz o nome do cachorro, Chárik, como Bola, que depois vira o cidadão Bolaov. Embora chárik signifique mesmo “bolinha” (é o diminutivo de char, esfera), o nome foi escolhido mais por ser um nome de cachorro comum na Rússia, como o nosso Totó (que poderia virar “Totov”, se seguissem essa linha de adaptação). Trata-se, inclusive, de um nome para cachorrinhos pequenos, de madame, e, por isso, o próprio Chárik — ao que tudo indica, um vira-lata grandão — se espanta da primeira vez que o chamam assim.

O prenome que Chárik escolhe depois de virar gente também tem implicações interessantes. Na maior parte do período czarista, os russos escolhiam nomes para os filhos de acordo com os santos homenageados no dia do nascimento ou em outros dias, e, por isso, o calendário servia de fonte para se consultar na hora do batismo. Um exemplo desse hábito aparece na memorável cena em O capote, de Gógol, que explica como o personagem principal veio a se chamar Akaki Akákievitch. Após a Revolução, em especial nas décadas de 1920 e 1930, as pessoas mais empolgadas com a nova vida passaram a dar a seus filhos nomes desprendidos da tradição religiosa e mais condizentes com os novos valores sociais. Assim surgiram nomes como Ninel (Lenin, ao contrário), Arlen (acrônimo de Ármia Lenina, Exército de Lenin), Vil (abreviatura de Vladímir Ílitch Lenin), Barricada, Ateíst (ateu), Granit(o), Hipotenusa, Herói, Industrína e muitos outros, sempre homenageando líderes revolucionários, as novas instituições ou objetos que remetiam aos avanços e conquistas da humanidade.

O nome Poligráf (polígrafo) Poligráfovitch satiriza essa tendência, e pôde ser extraído do calendário porque os calendários também foram alterados no início da URSS. Primeiro, houve adoção do calendário ocidental, o gregoriano, logo em 1918. Até então, o Império Russo usava o calendário juliano, pelo qual até hoje se regulam os feriados ortodoxos. No mesmo ano, os feriados religiosos também foram cancelados[1]. Logicamente, o calendário de onde Poligráf tirou seu nome já continha essas mudanças, bem como prováveis homenagens às conquistas do engenho humano — como o polígrafo — , e por isso tirou do sério o conservador Preobrajênski.

Outro nome com significado é o do professor Preobrajênski. Ele vem da palavra russa preobrajênie, que significa “transformação” ou “transfiguração”, e, por isso mesmo, tem tudo a ver com a função do personagem no conto. Além disso, diz-se que Bulgákov inspirou esse personagem em um de seus tios maternos, Nikolai Pokróvski, que era ginecologista e tinha um consultório em Moscou. Pokróvski vem de pokróv, que significa “intercessão” e que, assim como preobrajênie, é uma palavra comum no vocabulário religioso, inclusive na denominação de igrejas ortodoxas. Catedrais das Transfiguração (Preobrajênski sobór) e da Intercessão (Pokróvski sobór) existem aos montes na Rússia e, por isso, o nome mascara mal a identidade do modelo do personagem — o que pode ter sido a intenção do escritor.

Cabe ainda uma menção aos dois personagens de nome alemão, a saber, o médico Bormentahl e o síndico[2] Schwonder. O intelecto recém despertado de Chárikov cedo ouve as vozes das tendências europeias do século XIX — o cientificismo burguês de Bormentahl e o marxismo de Schwonder — , mas escolhe qual escutará segundo o que lhe convém no momento, seja por interesse ou por medo. É de se ressaltar que os dois personagens são russos, apenas descendem de estrangeiros (o médico, por exemplo, se chama Ivan, apesar de ser filho de um Arnold Bormentahl), o que indica que mesmo as posições que eles defendem já são “de segunda geração”, já passaram por uma russificação que temperou as ideias originais, antes de elas serem repassadas a Chárikov.

Embora não seja motivo de críticas especiais na obra de Bulgákov, a influência europeia e seus efeitos sobre o povo russo é um tema recorrente na literatura do país, de Dostoiévski a Gontcharov, e essa tradição literária herdada parece ter marcado presença em Coração de cachorro também. Chárikov, que é russo até o osso, tem seu comportamento moldado pelo cabo de guerra entre as influências dessas duas personagens de raízes estrangeiras. Apesar de a oposição clássica do livro ser entre Schwonder e Preobrajênski, quem se ocupa da “educação” de Chárikov, na prática, não é o velho professor, mas seu pupilo Bormentahl.

Os personagens

A origem social dos personagens é tão os mais relevante para a história que sua origem étnica. Na biografia do morto Klim Tchugúnkin, consta que “sua origem o salvou” de uma condenação na segunda vez em que ele foi pego por algum crime. Subentende-se que se trata da origem proletária, pois os médicos, ao planejarem livrar-se de Chárikov, lamentam não poder contar com a mesma benevolência por parte das autoridades, já que Bormentahl era filho de um investigador, e Preobrajênski, de um padre, como o tio de Bulgákov.

O próprio Chárikov se identifica como parte da classe trabalhadora, embora por exclusão, como vemos no seguinte diálogo:

— Bem, e o que diz esse seu encantador síndico?
— Não tem por que xingá-lo de “encantador”! Ele defende interesses!
— Interesses de quem, que mal lhe pergunte?
— Da classe trabalhadora, é claro.
— Então quer dizer que o senhor é trabalhador?
— Claro, nepman é que eu não sou.

Os nepmany — de NEP, o acrônimo russo para Nova Política Econômica — eram os remanescentes da iniciativa privada, profissionais autônomos e donos de pequenos negócios, cuja existência foi tolerada na URSS de 1921 até a ascensão de Stálin ao poder. Eles eram vistos como um mal necessário para recuperar a economia após a Guerra Civil, resquícios do capitalismo a serem superados no esforço pela coletivização. A alfinetada de Chárikov acertou o alvo. O professor Preobrajênski era, de fato, um nepman; mas, mais do que isso, ele era um intelectual, um membro da intelligentsia russa, e gostava de se comportar como tal.

Bulgákov usa diversos símbolos para contrastar os hábitos burgueses e intelectuais do professor Preobrajênski com os hábitos populares que Chárikov herdou do homem cuja hipófise recebeu. Por exemplo, o único passatempo que o professor aprecia é o teatro, enquanto o Chárikov prefere o circo, pois, segundo ele, no teatro falam demais. Chárikov não gosta de vinho, só quer beber vodca, e muita. Outro ponto de choque que permeia a história, talvez mais sutilmente, são as canções.

O professor Preobrajênski cantarola o tempo todo trechos de uma composição de Tchaikóvski com letra de A. Tolstói, chamada “Serenata de Dom Juan”, uma peça clássica até hoje interpretada por cantores eruditos, trecho da ópera Aida. Chárikov, por outro lado, nos seus primeiros dias de vida, é pego assobiando uma canção popular da década de 1910, conhecida como “Eh, iáblotchko!” (Ei, maçãzinha!), do agrado dos soldados revolucionários, que foi coreografada em 1926 e passou a ser conhecida como “Canção dos marinheiros russos”. Mais tarde, ouve-se ele tocar balalaica — um dom que herdou junto com a glândula transplantada, já que o finado Klim Tchugúnkin costumava ganhar a vida com isso — e novamente escolhe uma música folclórica russa, “Svetit mêsiats” (A lua brilha).

Essas escolhas evidenciam o contraste entre o refinamento do professor e a vulgaridade de Chárikov. Mas fica a impressão de que o escritor zombou dos dois lados ao mesmo tempo, porque as escolhas musicais de ambos são estereotipadas e o “refinamento” do Preobrajênski — o “luminar da Europa”, nas palavras de Schwonder — também acaba soando meio brega no pacote.

Essa tática de atirar para todo lado funciona bem para atingir a finalidade de uma sátira, que é expor os diversos podres da sociedade em que o autor está inserido.

Críticas à sociedade soviética

E as críticas se escondem em quase cada linha, cada fala desta novela, desde a fase em que Chárik ainda é um cão faminto perambulando pelas ruas de Moscou, a comida de má qualidade servida na cantina dos trabalhadores e a datilógrafa passando fome para comprar meias chiques servem de contraste para quando encontramos Preobrajênski, tão senhorial em uma sociedade sem senhores. À mesa dele são servidos vinho, caviar e esturjões, e a linguiça de segunda categoria ele só compra para dar para o cachorro mesmo.

Preobrajênski tem algumas virtudes, como a inteligência considerável e princípios humanistas que fazem com que ele proíba Bormentahl de matar Chárikov, e decida não puxar as cordinhas para escapar ileso da punição se fizer mesmo algo contra o referido cidadão. Ao menos isso é o que ele diz na conversa tardia após a bebedeira do ex-cão. Mas o professor não se envergonha de puxar essas mesmas cordinhas para permanecer acima das regras em todas as outras áreas, ocupando um apartamento gigantesco enquanto famílias se apertam nos demais andares, mantendo duas empregadas domésticas, e tratando todo mundo com impaciência e superioridade. Suas queixas sobre o “nível” do prédio — que teria baixado graças aos novos moradores — fazem lembrar declarações locais sobre aeroportos parecendo rodoviárias, e fica bem difícil simpatizar com esse personagem. Algumas reclamações e ironias dele são válidas, é fato, mas algumas queixas de Chárikov contra ele também contêm justiça, e não dá para apoiar quem critica a corrupção de um sistema e, ao mesmo tempo, se aproveita dela em seu favor.

Dentre as coisas que parecem despertar a irritação irônica de Preobrajênski está a excessiva burocracia da nova sociedade. A associação de moradores ou comissão predial (domkom), as hierarquias e corpos decisórios, as reuniões recreativas mais ou menos compulsórias… Bulgákov se revolta contra a burocracia soviética em várias obras, a principal sendo Diabolíada, que gira em torno desse assunto.

Em Coração de cachorro, essa crítica aparece em segundo plano, mas está por trás de uma das citações mais emblemáticas do livro. Quando Chárikov se torna humano o bastante e decide que quer mandar confeccionar documentos para si, ele solta a seguinte frase, para convencer o professor a ajudá-lo[3]:

O principal ataque de Bulgákov, porém, é contra a própria existência de Chárikov, contra a transformação antinatural de um animal em um ser humano e a tentativa vã de civiliza-lo. Certo ou errado, é assim que o escritor via o homem soviético, então em formação.

Se já lhe irritavam, como a Preobrajênski, figuras socialistas sinceras, como Schwonder ou a moça vestida de homem, que ele não poupou esforços para ridicularizar, é nos Chárikov que ele vislumbra o perigo real. Nesse ser formado a partir de um cachorro de mentalidade — naturalmente — subserviente e quase monarquista, que considera o dono e benfeitor uma “divindade” só porque ele lhe dá linguiça de segunda classe, e dos restos mortais do pior elemento do povo, um beberrão briguento e provavelmente preguiçoso, que, com seus hábitos, ocasionara a própria morte precoce.

E a culpa pelo surgimento desse ser atípico, dessa aberração da natureza, Bulgákov coloca justamente nos ombros da intelectualidade, que estava quieta fazendo experimentos irresponsáveis em seu laboratório e, atentando aos interesses estreitos de suas próprias pesquisas, e, por acidente, acabou trazendo à vida algo muito maior do que planejavam, compreendiam, ou podiam controlar. A premissa é mais ou menos a mesma da novela Os ovos fatais.

Lá também temos o cientista “alheio e superior” à política, ocupado só com sua ciência, que no curso de um experimento acaba fazendo uma descoberta imprevista de enorme potencial, logo apropriada pelo poder para uso, antes que se tenha tempo de estudar a própria descoberta e suas implicações, o que acaba causando uma tragédia. Se transportarmos para a vida real, é provável que os “experimentos irresponsáveis” da intelligentsia, atacados por Bulgákov, refiram-se aos esforços para a ilustração do povo e às conclamações revolucionárias proferidas pela intelectualidade nos jornais e revistas e em livros de modo crescente desde a metade do século XIX. Boa parte dessa mesma intelectualidade revolucionária decepcionou-se nas primeiras décadas do século XX ao ver a Revolução tomando rumos diferentes do que eles planejavam, e acabaram perseguidos como contrarrevolucionários, presos ou mortos, ou refugiados entre os senhores, que estavam todos em Paris[4].

É importante frisar que, ao contrário do que acontece em outras histórias de ficção científica como Frankenstein ou A ilha do Dr. Moreau, a criação de Chárikov é acidental, e, por isso, mesmo os cientistas não sabem o que fazer com ele.

Mesmo depois de virar gente, o cão-homem oscila entre a docilidade e a malandragem, com ocasionais arroubos de selvageria provocada por seus instintos animais, que colocam ele mesmo em apuros semelhantes aos de travessuras infantis. (Pessoalmente, conheço duas crianças que aos quatro anos se trancaram no banheiro e não conseguiam sair igualzinho o Chárikov).

Se as queixas contra a impaciência e a atitude autoritária do professor para com ele a princípio nos comovem, pouco a pouco vamos perdendo a paciência também ao ver Chárikov ficando mais malandro e escolhendo, de cada lado, o que mais lhe convém. Quando precisa, ele se submete às regras dos médicos, para poder dormir num apartamento espaçoso e comer bem. Por outro lado, vai aceitando os conselhos de Schwonder naquilo em que eles podem lhe dar direitos e melhorar sua condição. Ele lê os teóricos marxistas, não entende nada, alega discordar de ambos os lados da discussão, sem conseguir explicar por que, mas retém a única mensagem que lhe interessa: que tudo deve ser dividido.

É por isso que Preobrajênski encara qualquer sinal de “avanço” de Chárikov com ceticismo, chegando a afirmar que Schwonder, ao tentar doutrinar Chárikov, está criando um monstro que se voltará contra o próprio marxista mais tarde. E o acerto dessa predição se anuncia no horizonte quando o primeiro emprego que Chárikov arranja é no controle de pragas urbanas, trabalho que exige que ele persiga os animais de rua, entre os quais perambulava alguns meses antes. Verdade que o encaixam nessa função por causa de sua inclinação ainda intensa para caçar gatos, e que ele parece se voltar só contra os gatos nos primeiros dias de trabalho, mas quem sabe qual seria a evolução dessa tendência caso Chárikov permanecesse por mais tempo em forma humana. Afinal, o próprio cientista prevê que ele deixando de ser cachorro e largará os hábitos caninos em pouco tempo — o que, a seu ver, não é bom sinal. Quando Bormentahl imputa os problemas causados por Chárikov ao fato de ele ser “um homem com coração de cachorro”, Preobrajênski responde:

Oh, não, não (…), você está cometendo um erro gigantesco, doutor, pelo amor de Deus, não difame o cachorro. (…) Compreenda que o horror está no fato de que ele já não tem coração de cachorro, mas sim um coração humano.

Pode-se, é verdade, atribuir tal observação à aversão de Preobrajênski a tudo que tenha vontade própria; talvez ele só consiga gostar de quem lhe dedica uma fidelidade canina. Mas momentos como esse ventilam críticas universais, maiores que as fronteiras espaciais ou temporais da União Soviética. Da mesma natureza é a observação de Zina, quando Preobrajênski, à mesa, dá comida ao recém adotado Chárik: “Alimente um cachorro na sala de jantar, (…) e depois não o tirará daí nem pagando”. E as próprias considerações do cachorro quando lhe botam uma coleira são dignas de integrar um tratado sobre a liberdade:

No dia seguinte, puseram uma larga coleira brilhante no cachorro. Em um primeiro momento, olhando-se no espelho, ele ficou bastante abalado, encolheu o rabo e fugiu para o banheiro, pensando em como tirar o objeto esfregando-o num baú ou numa caixa. Mas logo o cachorro entendeu que era um tolo. Zina o levou para passear na corrente. O cachorro ia pela travessa Obukhov como um preso, ardendo de vergonha, mas, percorrendo a rua Pretchistenka até a igreja de Cristo Salvador, compreendeu perfeitamente o que significa uma vida com coleira. Lia-se uma inveja furiosa nos olhos de todos os cachorros que ele encontrava, e na travessa Miórtvi, um vira-lata esgalgado de rabo cortado latiu-lhe “patife de madame” e “pau-mandado”. Quando eles estavam atravessando os trilhos de tram, um policial lançou um olhar para a coleira com satisfação e respeito, e, quando voltaram, aconteceu a coisa mais inédita da vida dele: o próprio porteiro Fiódor abriu a porta da frente para deixar Chárik entrar. […]
“A coleira é o mesmo que uma pasta de trabalho”, gracejou mentalmente o cachorro e, abanando o rabo, seguiu para o primeiro andar como um patrão.

Cabe ainda fazer uma observação sobre o tema central do livro, qual seja: a história acaba com Chárikov voltando a ser cachorro. O modo como isso acontece é bastante emblemático: Chárikov denuncia o professor Preobrajênski às autoridades por algumas declarações que o velho fizera, dentre outras violações das regras. Acontece que uma dessas autoridades era amiga do professor, e o avisa da denúncia, subentendendo que não prosseguirão com as investigações. Mais tarde, Chárikov recebe um ultimato para sair do apartamento, que, afinal, Preobrajênski considera legitimamente seu. O ex-cão resiste, tenta atacá-los com uma arma, mas Bormentahl — o da origem estrangeira — o sobrepuja pela força e, usando a hipófise de cachorro, que tinham mantido guardada, os médicos fazem, secretamente, a operação reversa. Chárikov provavelmente corre o mesmo risco de morrer que correra na primeira operação, mas tudo corre bem e, quando as autoridades dão pelo desaparecimento e vêm investigar o que acontecera, ele já estava no processo de voltar a ser apenas Chárik de novo. O professor trata o assunto como se a humanização nunca tivesse ocorrido (“falar ainda não é ser humano”), e Chárik termina seus dias como um cãozinho contente aos pés do cientista, lamentando apenas a cicatriza na cabeça que, ele acredita, não demorara a sarar.

Seria essa reversão profética, uma predição do fim do homem soviético?

Com todas essas nuances em torno de um enredo bem amarrado, plausível dentro de seu próprio universo de ficção científica, e desenvolvido numa escrita afiada e espirituosa, Coração de cachorro é uma sátira que vale muito a pena ler, mesmo para quem não compartilha os posicionamentos do autor. Mas esteja preparado para passar nervoso, porque os personagens são bem irritantes.

Adaptação

Há duas adaptações de Coração de cachorro para o cinema. A primeira, Cuore di cane, é italiana, datada de 1976, com direção de Alberto Lattuada. A segunda, soviética, saiu em 1988, pouco depois da primeira publicação oficial do livro na URSS (1987), e foi dirigida por Vladimir Bortko. Ambas as adaptações se baseiam na versão com erros do livro, pois saíram antes da primeira publicação do texto original (1989).

Assisti apenas a segunda, porque só descobri a versão italiana depois de ter visto o filme de duas horas e dez do Vladimir Bortko e já estava um pouco enjoada da obra, sem paciência para encarar uma segunda encenação. Especialmente porque achei a versão soviética um tanto chata.

Em linhas gerais, ela é fiel ao original, a maioria dos diálogos se reproduz textualmente, mas a produção não foi feliz ao reproduzir a ação dos primeiros 4–5 capítulos do livro. Isso, em parte, se deve às escolhas de narrador que Bulgákov fez: a primeira parte é narrada do ponto de vista do cachorro, e a transformação do cachorro em gente, nós acompanhamos pelo diário do Bormentahl. Transmitir tais recursos do texto para a tela é um desafio em tanto, e era ainda mais em 1988, antes da larga utilização de computação para edição audiovisual.

Outro “problema” do filme, se dá para falar assim, é que todo mundo é mais simpático que no livro. Como bem se expressou um amigo que também leu a obra recentemente, os personagens de Coração de cachorro são todos insuportáveis. Talvez não todos, mas os principais eixos em disputa: Preobrajênski, Schwonder e Chárikov. No filme, Chárikov é abandonado à própria sorte na tarefa de nos causar repugnância.

Como a União Soviética ainda estava de pé, Schwonder sempre faz uma entrada triunfal, parecendo muito digno e bem mais desenvolto que o rapaz meio atrapalhado do livro — o ator é, inclusive, bem mais velho do que imaginei o personagem. Por outro lado, em 1988 a União Soviética já estava quase ruindo, a impaciência contra o regime dentro do país devia estar no auge, e, por isso, o reacionário professor Preobrajênski também parece um velho muito mais razoável do que sua versão livresca. Muito do que, no livro, ele gritava e rugia e sapateava aparece no filme dito com paciência, como que tentando argumentar. E, assim, com Schwonder e Preobrajênski descumprindo seus papéis literários de pressões opostas e tortas, sabe-se lá como é que Chárikov se transforma em um tamanho patife.

Dizem que o professor Preobrajênski da adaptação italiana é mais fiel ao livro, mas eu não saberia confirmar. Em todo caso, o Preobrajênski da versão cinematográfica soviética foi o que se consagrou no imaginário social dos russos, influenciando, inclusive, as análises posteriores sobre a obra literária.

Eu não diria que vale assistir à adaptação soviética, exceto como monumento da cultura pop russa, porque é um filme bem conhecido — mais até do que o livro — e citações dele podem ainda ser proferidas pelos russos por aí. Pelo menos enquanto ainda existirem pessoas que viveram parte da vida na URSS.

Ela está disponível inteira no YouTube, no próprio canal da produtora Lenfilm, mas não tem legendas (ainda):

[1] A situação, na prática, era um pouco mais complexa. Em que pese banidos do calendário oficial, que agora só contava com seis feriados revolucionários por ano, os feriados religiosos continuaram a ser observados em regiões da União Soviética, com base numa permissão que o governo legara aos setores produtivos locais para estabelecer 10 feriados anuais extra, a seu critério, que seriam gozados, porém, sem remuneração. O governo sabia que era inútil entrar em conflito com a religiosidade ainda bastante presente na cultura russa, e por isso preferiram fazer essas concessões, atacando as tradições religiosas de uma outra forma, com festas antirreligiosas, celebradas na mesma data de feriados como a Páscoa e o Natal. Organizadas pela União da Juventude Comunista, essas festas continham, entre outras atividades voltadas a ridicularizar as religiões, a queima de deuses, santos e objetos de culto das principais religiões seguidas no território nacional. (Fonte: Arquivo Estatal do Oblast de Iaroslav. Disponível em: https://www.yararchive.ru/publications/details/247/. Acesso em 02/04/2020. Em russo).

[2] Na verdade, ele era o presidente do comitê predial (o domkom, abreviatura de domovoi komitet), ou da associação de moradores. A implicância com tal figura — os “síndicos” soviéticos — aparece em outras obras de Bulgákov, como O mestre e Margarida e a peça Ivan Vassílievitch.

[3] Aqui cabe um parêntese tradutório. Eu li este livro no original, e, ao procurar uma tradução de onde pudesse extrair as citações para esta resenha, encontrei essa frase redigida assim: Mas o senhor sabe que uma pessoa não pode existir legalmente sem documentos (BULGAKOV, Mikhail. Coração de cão. Tradução de Sílvia Valentina. Lisboa: Alêtheia Editores, 2014. p. 51.). Esse advérbio não consta do texto original e sua adição — provavelmente visando dar maior naturalidade à declaração — enfraqueceu a crítica do autor, que mirava mesmo o absurdo. Bulgákov aponta para uma proibição quase metafísica de existir não-documentado, e não uma simples clandestinidade. É verdade que toda tradução é, em grande medida, um esforço interpretativo, mas é preciso cuidado para não perdermos o que o autor realmente disse ao tentarmos adivinhar e transmitir o que ele quis dizer.

[4] — Não! — ribombou Filipp Filippovitch, na porta. — Não permitirei chamarem o senhor por tal nome e patronímico no meu apartamento. Se quiser que paremos de chamá-lo de “Chárikov” com familiaridade, tanto eu quanto o doutor Bormentahl o chamaremos de “senhor Chárikov”.

— Não sou senhor, os senhores estão todos em Paris! — latiu Chárikov.

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Érika Batista

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