Resenha: Noites Brancas (Белые ночи), de Fiódor Dostoiévski

Érika Batista
5 min readJun 24, 2018

Apesar do subtítulo de “um romance sentimental das memórias de um sonhador”, Noites Brancas é uma novela, dividida em cerca de cinco capítulos, de enredo bem singelo mesmo. Um rapaz que conhece uma moça numa ponte de São Petersburgo, durante as noites brancas — um período do verão em que escurece muito tarde, de dez horas até uma da manhã, e lá pelas quatro da manhã já clareia de novo.

Estão acontecendo agora em junho, mas esta foto, tirada por Konstantin Plaksin, é de 2014.

Eles ficam amigos, contam suas vidas um pro outro, e ela revela que está esperando seu amado. O sujeito, que prometeu se casar com ela um ano atrás, está na cidade e já devia ter vindo vê-la, mas nada de dar as caras. Quando o Sonhador resolve confessar que se apaixonou pela moça, Nastienka, e ela lhe alimenta as esperanças de ser correspondido (última chance de fugir do spoiler), o Amado volta, Nastienka se vai com ele, e os sonhos do protagonista de materializar felicidade ruem por completo.

O livro inteiro se compõe dos passeios e diálogos do Sonhador e de Nastienka. Já na Primeira Noite, antes mesmo de eles se encontrarem, travamos conhecimento com o Sonhador em um passeio noturno por São Petersburgo, e ele nos mostra desde o comecinho de que tecido é feito:

Ele nos narra como “faz amizade” com as figuras da cidade, por falta de amigos de verdade, e como se sente abandonado por toda a população, que foi para suas datchas sem levá-lo junto. O momento de melancolia é obliterado pela beleza da natureza, quando o passeio do moço o leva à estrada para o campo. Ao voltar para a casa, alegre, ele passa por Nastienka, cujos olhos chorosos chamam sua atenção. Pensa em abordá-la, e no início não dá certo, mas um incidente casual acaba por aproximá-los.

O moço, tomando coragem, pede a amizade dela, e confessa:

Eu sou um sonhador; tenho tão pouca vida real que eu, minutos tais como este, como agora, conto tão raramente, que não posso deixar de repetir esses minutos nos meus devaneios.

No dia seguinte, já se encontram voluntariamente, e o Sonhador nos abre seu coração e sua história, num longo monólogo sobre sua vida dissipada em sonhos que qualquer outro sonhador sente profundamente. (Não é à toa que ele define a si mesmo como “um tipo”). Talvez o moço precisasse do sábio conselho do Dumbledore para o Harry: “Não vale a pena viver sonhando e se esquecer de viver”.

Nastienka, por sua vez, apesar de também se definir como uma sonhadora, está mais a fim de seguir esse conselho. Quando chega a sua vez de nos contar sua história, ela nos conta, igualmente, sobre as medidas concretas — passos bem corajosos — que tomou para alterar sua realidade. Ela é determinada, e gosta de deixar as coisas as claras.

Ao perceber que o Sonhador está esquisito, tentando ocultar-lhe algo, ao pressentir que ele se apaixonou, ela tenta estimulá-lo a se abrir, a cuspir o que lhe incomoda, com palavras que deveriam ser gritadas em alto-falantes, no nosso mundo de máscaras e solidão:

“Escute, por que não somos todos como irmãos para com seus irmãos? Por que a melhor pessoa sempre como que esconde algo de outro e se cala para com ele? Por que não dizer direto, agorinha, o que há no coração, desde que você saiba que não está lançando palavras ao vento? Se não, qualquer um fica parecendo mais severo do que é na realidade, como se tivessem pavor de ofender os próprios sentimentos, se os revelarem cedo demais…”

Faz muito tempo a primeira vez que eu li Noites Brancas, quase uma década. Nessa tradução velhinha aqui:

Tradução de Carlos Loures.

Lembro que na época não me encantei muito pelo livro. Achei triste, bem escrito, mas meio sem graça pela falta de eventos; O Jogador, que li na mesma época, me impressionou muito mais.

Ha pouco tempo, após ter feito umas referências importantes a esta novela no livro que estou escrevendo, resolvi reler Noites Brancas, ou Belye notchi (Белые ночи), dessa vez no original.

“Pequena coletânea das obras” de Dostoiévski. Também tem O Duplo, Memórias do Subsolo e outras novelas.

Dessa vez gostei muito mais.

Tenho opinião, porém, de que a maior de apreciação não teve tanto a ver com a língua, mas com meu nível de maturidade, como leitora, e como pessoa. Dez anos atrás eu não tinha a mesma idade do Sonhador, como tenho hoje, e as palavras e a vida dele não encontravam o eco que agora encontram nas minhas próprias vivências.

A compaixão distante da primeira leitura deu lugar a uma vontade de abraçá-lo e dizer “I feel you, bro”.

E, por incrível que pareça, o livro não me pareceu mais tão triste. A esperança e o otimismo presentes nesse personagem ganharam novo relevo, a frase que encerra a novela:

Meu Deus! Um minuto inteiro de deleite! Por acaso isso não basta para toda uma vida humana?..

…se destacou como verdade e consolação.

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Érika Batista

Escritora, leitora, e tradutora. Conheça meus livros, projetos, portfolio e redes sociais em https://linktr.ee/erika.sbat