Resenha: O jogador, de Fiódor Dostoiévski
Faz uns dez anos que li O jogador pela primeira vez e uma das poucas coisas que restava dele na minha mente era a impressão de se tratar de um livro muito intenso. Quando eu o reli para o desafio literário Um ano de literatura russa, em novembro, essa impressão não só foi confirmada, mas explicada pela história por trás da história.
NOS BASTIDORES
Em 1865, Dostoiévski foi apresentado a Fiódor Timofêievitch Stellóvski, um grandessíssimo patife que construíra sua carreira de editor explorando os artistas russos, músicos ou escritores em momentos de necessidade. A apresentação se deveu ao fato de que o próprio escritor estava com extremas dificuldades financeiras naquele momento, disposto a assinar qualquer coisa que lhe rendesse uns rublos, e, numa dessas, acabou quase vendendo a alma ao diabo.
O tema principal do contrato firmado por Dostoiévski com Stellóvski dava ao editor o direito de publicar uma vez a obra completa do escritor. Havia, no entanto, uma cláusula-armadilha: se Dostoiévski não entregasse ao outro um romance com certo volume até 1º de novembro de 1866, Stellóvski entraria no direito de publicar tudo o que Dostoiévski escrevesse pelos próximos nove anos sem lhe pagar um centavo por isso. Dostoiévski tentou pagar o valor recebido de volta para desfazer o contrato, pediu adiamentos (quando faltavam quatro meses para ele entregar o livro), mas Stellóvski não quis e disse na cara do escritor que não queria porque para ele era mais lucrativo que Dostoiévski perdesse o prazo.
Havia uma agravante, da qual o editor tinha ciência: quando firmou o contrato, Dostoiévski já estava “devendo” um romance para a revista Rússkii véstnik, a saber, o seu livro mais célebre, Crime e castigo, no qual trabalhava na ocasião. E ele continuou a trabalhar em Crime e castigo pelo resto de 1865 e por boa parte de 1866, sem nem pensar na cláusula armadilha, ainda mais que se revolvia em outras preocupações, como as dívidas, o afilhado e os próprios ataques epiléticos de frequência no mínimo mensal. Em meados de 1866, contou a um amigo sobre o assunto e anunciou seu plano de usar os quatro últimos meses do prazo para escrever os dois romances simultaneamente, um de manhã e outro à noite.
Algo o fez trocar esse plano por outro: um amigo lhe sugeriu que contratasse uma estenógrafa e ditasse o livro para ela. A hoje esquecida arte da estenografia consistia em usar abreviaturas para anotar muito velozmente um texto ditado, uma reunião, uma audiência judicial. Era uma habilidade requisitada para secretárias e, é claro, as notas tinham que ser decifradas depois se fosse preciso apresentá-las em formato de texto propriamente dito.
Aceitando a sugestão do amigo, Dostoiévski contratou Anna Grigórievna Snítkina, que tinha vinte anos na época, para auxiliá-lo a sair do sufoco. Eles trabalharam febrilmente por vinte e seis dias, que renderam o romance O jogador (que inicialmente se chamava Roletemburgo) e um noivado: Anna logo tornou-se a Sra. Dostoiévskaia.
Então não é de se estranhar que um livro escrito no meio de tantas emoções cruzadas terminasse carregado de emoção, ainda mais que ele se baseava parcialmente em experiências também bastante intensas do escritor no início daquela década. O próprio Dostoiévski estivera em cidades de jogatina citadas no romance, como Homburg e Baden-Baden, fora viciado em jogo ele mesmo, vivenciara o episódio com o eclesiástico católico contado pelo narrador, e também extraíra de uma situação da própria vida a intriga amorosa que permeia a trama.
Mas sem colocar o carro na frente dos bois, passemos ao livro em si.
A HISTÓRIA
O jogador tem o subtítulo “Das notas de um jovem”, e o jovem em questão é Aleksei Ivanovitch, o narrador-protagonista. Ficamos sabendo pouca coisa sobre ele ao longo do livro: ele é aristocrata, tem 25 anos, sangue tártaro e formação universitária, mas obviamente pertence à nobreza pobre, pois trabalha como preceptor dos filhos de um general cujo nome não se menciona.
Quando a ação começa, ele está retornando para a cidade alemã de Roletemburgo (a cidade imaginária em que se passa a história) após cumprir algumas incumbências de natureza financeira para o patrão e a afilhada dele, Polina. Por essa jovem, o protagonista está apaixonado, confessamente, e as relações entre eles são estranhas, ao mesmo tempo íntimas e hostis. Outra pessoa apaixonada por Polina é o tímido e honrado ricaço inglês Mr. Astley, um amigo que Aleksei fez na viagem. Polina, por sua vez, está apaixonada pelo francês Des Grieux, conforme mais tarde descobrimos. O triângulo (ou quadrilátero) amoroso, no entanto, não é o ponto central do enredo, embora possa parecer, à primeira vista. Eu diria até que o livro não é só sobre o vício em jogo, seu motivo óbvio, mas sobre o dinheiro.
Sim, a cada três parágrafos, tropeçamos no dinheiro, que está no centro de quase todas as relações interpessoais retratadas no livro. O general já começa a história afundado em dívidas com o francês Des Grieux, com a propriedade e os bens de seus filhos totalmente hipotecados em favor do sócio (ou ex-sócio), e aguardando ansiosamente que sua tia solteirona morra para receber uma boa herança. Ele também precisa de dinheiro para manter o estilo de vida luxuoso dos nobres russos no estrangeiro e para se casar com uma moça de reputação duvidosa por quem se apaixonou, também francesa, a mademoiselle Blanche “de Cominges”.
Polina também precisa de dinheiro, mas ela não diz para que, só pede que Aleksei o ganhe para ela, apostando na roleta o dinheiro que ela conseguira ao penhorar suas joias. O preceptor aceita, apesar do pedido do general para que ele não jogasse, para não manchar a reputação do patrão, ganha dinheiro, perde dinheiro, conversa vai, conversa vem, Polina acaba provocando indiretamente a demissão de Aleksei e, nisso, quando menos esperam, em vez de um telegrama sobre a herança, aparece em Roletemburgo a própria vovó, que estava com um pé na cova. Afinal, a cidade também era um balneário termal, e os médicos tinham-lhe recomendado terminar a recuperação no estrangeiro.
Como se não bastasse esse choque, a vovó acaba viciada na roleta, perde tudinho o que trouxera da Rússia, tendo que pedir dinheiro emprestado para voltar e dando o que falar na cidade. Os dois franceses, vendo a viola em cacos — i.e., que daquela fonte não sairia nem um dinheiro para o general, nem, consequentemente, para eles — preparam-se para decolar. É nesse momento que se revela que Des Grieux e Polina eram amantes e, para se livrar dela de maneira “honrosa”, ele perdoa uma parte da dívida do padrasto da moça, parte essa correspondente ao patrimônio da própria Polina, herdado da mãe dela, que o general havia dissipado.
Desesperada, ela recorre a Aleksei, e é nesse momento que o demônio da roleta possui o rapaz. Desde o começo ele queria jogar, acreditava que sua própria sorte mudaria na roleta, mas não tinha tentado até então. O desabafo de Polina, interpretado por ele como um pedido de socorro, é o empurrão que faltava. E, talvez devido à afamada “sorte de principiante”, ele ganha uma verdadeira, quebra a banca de vários jogos disponíveis, apesar de jogar sem nem um cálculo, numa espécie de frenesi.
Ele leva o dinheiro para casa e oferece parte dele para Polina, para que ela jogue na cara de Des Grieux o valor da dívida “perdoado” por ele e se liberte moralmente. Polina também está numa espécie de febre, e eles dormem juntos. No dia seguinte, furiosa, ela acusa Aleksei de tratá-la como uma prostituta, joga o dinheiro na cara dele e foge para o abrigo do Mr. Astley. Nosso herói vai saber notícias dela, troca farpas com Mr. Astley, e pouco depois esquece de repente do seu amor por Polina quando recebe daquela mesma mademoiselle Blanche um convite para ir a Paris com ela torrar o dinheiro que ele ganhara em Paris.
O convite é aceito. A curta temporada em Paris traz prazeres a Aleksei, mas não muita satisfação: ele passa os dias em um cabaré aprendendo a dançar cancã e se embebedando enquanto a mademoiselle Blanche compra e mobília um apartamento e vive em alto padrão com o dinheiro dele. Segundo suas próprias notas, o rapaz não via a hora de que a temporada acabasse. E quando isso acontece, ele volta para as cidades de jogatina alemãs, as quais percorre por muito tempo, apostando, ganhando um pouco, mas perdendo muito, chega ir preso por dívida e a se empregar como secretário-lacaio de um figurão.
Ele retoma suas notas pela última vez para registrar uma conversa com Mr. Astley, cerca de um ano e meio ou dois após os eventos principais do livro. Nessa conversa fica claro que não tem mais volta para ele: a obsessão de recuperar o perdido e a excitação gerada pelos próprios altos e baixos do jogo substituíram qualquer outro desejo ou ambição dentro dele e o arrastarão no seu círculo vicioso até o fim.
OS PERSONAGENS
Se não todos, a maior parte dos livros do Dostoiévski contém referências autobibliográficas. A abundância delas em O jogador, porém, faz com que muitos o considerem um romance autobiográfico. É preciso entender que, ao qualificá-lo de “romance autobiográfico”, os analistas não querem dizer que tudo o que ocorreu no livro ocorreu de fato na vida do autor. Mas há semelhanças de lugar e eventos, já mencionadas, e, principalmente, semelhanças nos personagens e nas ideias que eles ventilam, muitas das quais reproduzem opiniões abertas do escritor.
O narrador verbaliza ou materializa em suas ações muitas dessas opiniões. Dostoiévski descreveu seu personagem como “um tipo russo estrangeirado” em uma carta para um amigo, quando ainda anunciava a intenção de escrever o livro, adicionando: “Vou pegar uma natureza espontânea, um homem que, apesar de bem desenvolvido, não terminou seu desenvolvimento em aspecto algum, que perdeu a fé e ao mesmo tempo não ousa não acreditar, que se insurge contra as autoridades e as teme (…). O negócio é que toda a seiva de vida dele, suas forças, sua rebeldia e ousadia foram canalizadas para a roleta”.
É impossível descrever Aleksei Ivânovitch melhor do que o autor o fez, e essa descrição, em outras palavras, mas com o mesmo conteúdo, sai pela boca do Mr. Astley no corpo do texto.
Segundo Anna Grigórievna, seu marido tinha simpatia e compaixão pelo protagonista, simpatia que ela não compartilhava. De fato, Aleksei Ivânovitch pode ser bem irritante com sua provocação e sua pusilanimidade. A inteligência dele, porém, torna interessante ler suas opiniões, exprimidas nos inúmeros diálogos que compõem o livro.
Boa parte dessas opiniões dizem respeito às nacionalidades. Os ingleses são retratados como bondosos e honrados, os franceses, como amorais, falsos e interesseiros, os poloneses, como servis e trapaceiros, e os alemães recebem críticas a seu modo de vida. Aliás, é sensacional um dos trechos em que Aleksei Ivânovitch critica “o ídolo alemão”, i. e., o modo alemão de acumular riquezas. Segundo ele:
(…) a capacidade de adquirir capital entrou historicamente na catequese das virtudes e méritos do homem ocidental civilizado, e quase que como ponto principal.
Outro personagem que sustenta e demonstra os ideais de Dostoiévski é a vovó (e seus servos Potápytch e Marfa, respeitadores e apegados à Pátria). Ela é uma Russa com R maiúsculo, do jeito que um eslavófilo gosta. Ao mesmo tempo autoritária e bonachona, ela mantinha os servos ao pé de si e os via como gente, levando-os para os passeios, em contraponto a seu sobrinho, o general, que não achava isso conveniente.
A linguagem dela é recheada de provérbios e expressões (eu li no original, e esse aspecto foi um desafio), e ela é a única a chamar Polina não por seu prenome afrancesado, mas pelo nome original russo — Praskóvia. Dona de si, ela causa escândalo, mas, ao mesmo tempo, impõe respeito. Sua atitude é diametralmente oposta à do general, sempre preocupado com as conveniências, como, nas palavras do narrador, todos os seus compatriotas se comportam no estrangeiro:
Às vezes os russos ficam acovardados demais no estrangeiro e temem o que dirão e como olharão para eles, e — será que isso ou aquilo é conveniente? Em uma palavra, se comportam como se estivessem em um espartilho, especialmente os que têm pretensão de importância. O que eles mais amam é alguma forma preconcebida, uma vez estabelecida, a qual eles seguem como escravos — nos hotéis, nos passeios, nas reuniões, na estrada…
Essa atração pela forma e a aptidão para reconhecer a beleza e amá-la, na opinião de Aleksei Ivanovitch, é o que torna os russos mais propensos a cair pelos franceses, os quais, também segundo ele, muitas vezes consistem em uma forma atraente e nada mais. Por forma entenda-se formalidade, boas maneiras e elegância. Blanche e Des Grieux materializam essa forma. Quanto a Des Grieux, o nível de ironia com foi construído o personagem é maior quando se considera a referência ao personagem homônimo da História do cavaleiro Des Grieux e de Manon Lescaut, novela publicada em 1730 pelo Abade Prévost. O Des Grieux do romance é um homem bom e honrado que suporta agruras na mão de sua amante Manon Lescaut; o de Dostoiévski é o oposto absoluto. Quase como se ele não acreditasse que os franceses podem ser como o personagem do abade.
Mr. Astley faz o contraponto: sempre afável, estável, bem informado, digno e disposto a ajudar, ele é quase um deus ex machina para os demais personagens, no momento de necessidade. Notável também que ele gosta dos russos, mas de uma forma condescendente; aprecia suas excentricidades, mas não parece tê-los em alta conta.
Outra personagem com raízes na realidade é Polina. Ela é baseada na amante de Dostoiévski, Appolinária Súslova, com quem ele viajou pela Europa no começo da década de 1860.
Embora se diga que a personalidade de Súslova não era exatamente como a de Polina, já que esta era uma moça um tanto presa às conveniências e a primeira, uma mulher bastante dona de si, que conduzia sua vida amorosa de maneira independente, a inspiração sem dúvida existiu. A pista já está no nome, e talvez Dostoiévski tenha retratado Súslova como ele a compreendia, não como ela era de fato. Os caprichos, arroubos e parcial impetuosidade de Polina correspondem ao protótipo, e o elemento de sadomasoquismo emocional da relação dela com Aleksei Ivanovitch — sendo ele, no caso, o masoquista — estava presente também na relação entre Dostoiévski e Appolinária.
SUTILEZAS
Se, da primeira vez que li, o enredo de O jogador e seu desenvolvimento vertiginoso prenderam-me a tal ponto que consegui apenas formar uma opinião geral do livro, nessa segunda leitura, mais atenta, pude prestar atenção às sutilezas.
Um caso interessante, cuja responsabilidade não sei se cabe atribuir à pressa do autor para entregar o livro ou ao narrador, que tem um estilo bastante próprio e tautológico, aconteceu no fim do primeiro capítulo. Aleksei Ivanovitch e Polina vão conversar em um banco, cada um levando um dos filhinhos do general, Micha (Mikhail) e Nádienka (Nadejda). No fim da conversa, Polina chama Nádienka e vai para o cassino; Aleksei se levanta e vai dar uma volta para pensar em um pedido que Polina lhe fizera durante a conversa. Pergunta-se: e o Micha, evaporou?
Esse foi o único caso a indicar uma possível distração do escritor; todas as outras sutilezas observadas atestam, mais uma vez, seu incrível poder de observação e compreensão da psique humana.
Uma coisa que Dostoiévski fazia bastante, ao que parece, era observar doenças e doentes, mesmo algumas que ainda não tinham sido diagnosticadas direito na época. Isso me faz indagar se ele por acaso não intuiu a intolerância a lactose, pois é disso que a vovó parecia padecer. A doença que quase a levou à morte foram obstruções intestinais, também conhecidas como prisão de ventre. Ela foi curada com chá de sene. Dado momento, Des Grieux a convida para tomar leite e ela recusa, dizendo que leite lhe dá dor de barriga. Quem convive com alguém intolerante à lactose sabe que esse quadro é bem característico de tal condição.
Há nuances muito interessantes também na dinâmica da trama amorosa. São dignas de nota as alfinetadas discretas que Aleksei e Mr. Astley dão um no outro quando Aleksei vai aos aposentos do rival indagar sobre Polina, após ter passado a noite com ela.
Mais importante, porém, foi minha mudança de perspectiva em relação aos sentimentos do casal principal, o que talvez possa ser atribuído ao meu próprio amadurecimento. Se na primeira leitura eu acreditei nas afirmações do narrador sobre seu amor por Polina, dessa vez encarei-as com a mesma desconfiança que desperta o Bentinho de Machado e vi-me mais inclinada a acreditar que Polina estava certa o tempo todo sobre ele.
Nunca gostei do personagem dela e ainda não gosto, mas entendo melhor seu desespero e a conversa incoerente antes e depois de Aleksei ganhar a fortuna na roleta: ela tentava decidir, com base na leitura que fazia dele, se o rapaz era sincero nas juras de amor. Do que uma mulher naquela época podia dispor para avaliar os sentimentos de um homem a não ser aquelas pequenas missões cumpridas e a promessa de depor a própria vida — que, no entanto, não eram coisa incomum em qualquer jogo da conquista? Quem sabe se ela não ouvira coisas semelhantes de Des Grieux. Vê-se ali uma mulher que já tivera seus sentimentos ludibriados uma vez, fora seduzida e descartada. Ela queria ver se dessa vez valia a pena se arriscar.
E não valeu.
Aleksei Ivânovitch pode negar o quanto ele quiser que a trataria como uma cortesã, tal qual Des Grieux, pagando-lhe cinquenta mil francos e dando suas obrigações para com ela como quitadas — mas ele não demorou muito para dar os mesmos cinquenta mil de adiantamento para uma cortesã de verdade que lhe propôs abertamente o negócio. Tampouco fez grandes esforços para “reaver” Polina depois que ela fugiu e se abrigou com Mr. Astley. Ele basicamente deu de ombros, tocou a vida e esqueceu da sua suposta amada por um bom tempo, enquanto fazia sexo com prostitutas, se embriagava e dançava cancã. Nos seus diálogos com a consciência, ele faz menção de assumir que se aproveitara de Polina num momento de vulnerabilidade, mas logo distorce o raciocínio e só faltava dizer que ela pediu por isso:
Nesse caso, eu, é claro, respondera por Des Grieux e me tornara eu mesmo culpado, talvez, embora sem grande culpa. É verdade que tudo isso era só um delírio; também é verdade que eu sabia que ela estava delirando e… não prestei atenção nessa circunstância. Talvez agora ela não possa me perdoar isso. Sim, mas isso é agora; e na ocasião, hm, e na ocasião? Afinal, o delírio e a doença dela não eram tão fortes que ela não entendesse o que estava fazendo ao vir me ver com a carta de Des Grieux, não? Quer dizer que ela sabia o que estava fazendo.
Esses diálogos me lembraram de um poema de Marina Tsvetaeva, traduzido por Aurora Bernardini e que eu li no livro Indícios flutuantes, “Diálogo de Hamlet com a consciência”. No poema, Hamlet está junto ao rio em que Ofélia se afogara ou o túmulo dela, e argumenta com a consciência, afirmando o quanto a amava — e a consciência põe em dúvida, delicadamente, suas afirmações.
Emendando nessa comparação com Hamlet, é possível fazer outra ligação com o maravilhoso ensaio Hamlet e Dom Quixote, de Turgueniev. Segundo a classificação do autor, Aleksei Ivânovitch certamente seria um “Hamlet”, excelente na autoanálise e na análise em geral, mas imprestável para a ação altruística ou para a ação em geral, devido ao próprio egocentrismo.
E, enquanto Aleksei Ivânovitch, preso no seu egocentrismo, não encontra nada externo que o puxe, o liberte da armadilha da roleta, o livro também traz um exemplo contrário, de alguém que conseguiu se livrar, ainda que após grande humilhação. A vovó.
Há quem considere o segmento com a vovó uma espécie de parábola cristã ortodoxa russa no meio do livro. Segundo Ziabreva e Ponik no artigo Roman “Igrok” vo svete onomapoetike Dostoevskogo (O romance “O jogador” à luz da onomapoética de Dostoiévski):
L. P. Liubonskaia observou corretamente que Antonida Vassílievna é uma personificação do patriarcado russo moribundo, que conserva “o apego ao solo”, não nas palavras, como Aleksei Ivânovitch, mas de fato. Consideramos que a escolha de nomes para o criado e a camareira da vovozinha também servem à expressão do conceito da obra: Potápytch (Potap, do grego “peregrino”) prenuncia de antemão que “esse estrangeiro” não trará sorte à patroa, e prefere escapar para a liberdade, para a “nossa Moscou”, e Marfa (do hebraico antigo “senhora”, “dona da casa”) demonstra a ligação às propriedades moscovitas. O fato de que, em Berlim, a vovó manda de volta subitamente o lacaio Fiódor (do grego “Presente de Deus”) e quer seguir adiante “totalmente sozinha” corresponde totalmente à natureza apaixonada e contraditória da heroína, que se afastou temporariamente do Criador Todo-Poderoso. O final trágico da “história estrangeira” dela não demorou muito para acontecer. No entanto, ela teve forças para se arrepender por seu orgulho e abandonar Roletemburgo, para pagar os pecados rezando pelo resto da vida na Pátria.
Como toda obra de Dostoiévski que eu li até hoje, O jogador merece leituras e releituras e sempre se achará uma nova camada de significado. Aliás, merece uma boa adaptação também: a única adaptação que encontrei foi um filme soviético que é literal demais para provocar a mesma emoção que o livro provoca, em parte devido à ausência da narração na versão cinematográfica.
Se alguém envolvido com audiovisual por acaso ler esta resenha, fica a dica.
Se você gostou desse texto, ajude-o a alcançar mais pessoas! Mostre sua aprovação “aplaudindo” o texto ali na lateral da página (ou na parte de baixo, se você estiver lendo no aplicativo). Você pode dar de 1 até 50 aplausos, que ajudarão o algoritmo do Medium a decidir que textos vai recomendar para as pessoas. Conto com sua ajuda. Um abraço!