Sobre trocar a voz por pernas

Érika Batista
4 min readApr 6, 2022

(Este texto é uma reflexão de uns anos atrás que escrevi para mim e achei esses dias nos meus cadernos. Resolvi compartilhar, pois me parece útil. É um tanto diferente do que costumo postar aqui, tanto na temática, quanto no estilo. Escrevi do ponto de vista da mulher, mas acredito que valha para ambos os sexos e qualquer relacionamento. O texto é uma tentativa de elaborar um sentimento geral, um negócio que veio do coração para a mão, então não há, nele, debates lógicos, sutilezas e ressalvas. Adiciono, agora, esta: não quero dizer, com este texto, que não deva haver renúncias e conciliações no amor. O amor é, por natureza, uma renúncia parcial a si. Meu ponto é apenas — não se dilua, não se traia, e, acima de tudo, não traia seus ideais. Nenhum relacionamento vale os princípios dos quais você é feito, pois se você precisar trair seus princípios para permanecer em um, já não será você quem estará no relacionamento, mas uma carcaça, vazia e difícil de respeitar).

Estátua da Pequena Sereia colocada no porto de Copenhagen.

De repente A pequena sereia fez muito sentido para mim. Ela e a história da Natasha, em Humilhados e ofendidos. A mulher que deixa tudo para trás e toma a iniciativa de seguir o homem vai perde-lo inevitavelmente para outra.

Não sei se é por causa daquela história de que os homens são “caçadores naturais”, ainda acho isso meio baboseira. Talvez tenha mais a ver com o tipo de homem por quem uma mulher faz isso. Geralmente são os fracos, frágeis ou preguiçosos, que não estão mesmo dispostos a fazer grandes esforços e aceitarão o que a vida jogar no colo deles, seja a noiva arranjada pelos pais ou a vizinha que quer morar de graça.

Eles até podem ficar com você pela força da inércia, se você conseguir laçá-los, mas isso não significa que você vai ser feliz, porque eles também não estarão dispostos a grandes esforços para te manter. Faltará defesa em momentos de conflito, podem faltar condições materiais. E não, as mulheres que tomam para si esse tipo de missão não conseguirão salvá-los, mudá-los com suas próprias forças.

Porque a voz que elas tinham e que os atraiu para elas, a voz capaz de salvá-los, elas perderam numa barganha ao sair do mar. Ao deixar para trás tudo o que era delas, sem esforço deles, caminhando com as próprias pernas, o medo de perdê-los e pôr todo esse esforço a perder era tão grande que elas fizeram calar a voz discordante, a voz desse ambiente que poderia salvá-los. Eles depois encontrarão essa voz — verdadeira ou falsa — em outras bocas, e, felizes (temporariamente?) no novo amor, nem repararão enquanto a mulher que lhes deu tudo vira espuma do mar.

Ela nem pode mais se integrar de volta com o que ela era antes. Vira restos nesse ambiente. Destroços.

A mulher que tem esse tipo de instinto é a que quer salvar, quer se dar; talvez haja um quê de instinto materno também, que se apega ao que há de infantil, subdesenvolvido nesses homens, que na maioria das vezes não é fruto de uma inocência divina, mas de carências não atendidas na infância. E essa mulher tem tanto amor acumulado que acha que vai conseguir suprir com ele tardiamente essas carências e colocar tal homem no caminho do desenvolvimento humano normal. Vai fazer dele um homem e o homem perfeito, aliás, já que ele já tem um lado tão gentil, terno, puro.

Ela o vê à deriva no mar, sem ninguém tentando salvá-lo, e se arroja a essa tarefa. Não conta, porém, com o fato de que, assim que ele estiver de pé e em terra novamente, as pessoas que não se preocuparam em salvá-lo retornarão para a sua volta, e a influência delas é forte, tão forte, por causa do cordão umbilical que a infantilidade insaciada dele não deixa cortar, que ela jamais conseguirá enfrentá-las sozinha. E, se o fizer, ainda ganhará a antipatia dele, que não quer enxergar os defeitos delas. O Príncipe Erik é o filho. Deve escutar e obedecer o rei, seu pai.

Nesse momento, a única força capaz de se opor às ordens do rei — rei pai ou rei destino — é a própria vontade do príncipe. E a essa arma, a sereia renunciou quando deixou o mar. Não há nada nela que obrigue Erik a um esforço. Nada que o puxe para outro ambiente, para longe do círculo que lhe faz mal. A voz que o atraía para longe perdeu a moral quando se calou para acompanhá-lo.

É claro que, ficando nas ondas, ela corria o risco de nunca mais o ver (e talvez por isso tenha saído, por pressentir que ele não viria; que nem ele e nem seu amor ou simpatia ou interesse eram fortes o bastante para esse esforço). Mas a decisão foi errada, porque ele jamais valorizará os esforços, a renúncia dela. Quando muito, os aceitará com condescendência, e até certo tédio e desprezo, porque “isso foi fácil demais”.

A mulher só pode ajudar um homem a mudar e melhorar enquanto ela tiver sua própria vida, suas próprias convicções, e se mantiver firme nelas. O resto depende dele. E é assim que deve ser. Podemos estender uma mão para ajudá-lo a sobreviver no mar, mas não devemos deixar o mar. A ânsia do nosso coração por reencontrar o príncipe não deve nos levar jamais a fazer acordo com a bruxa e abrir mão da nossa voz.

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Érika Batista

Escritora, leitora, e tradutora. Conheça meus livros, projetos, portfolio e redes sociais em https://linktr.ee/erika.sbat