Sociedade dos Poetas Vivos: 7 livros de poemas lidos em 2020
O que mais li em 2020 foram poemas. Creio que pela praticidade: geralmente os livros têm menos texto e em uma ou duas tardes se lê tudo; os melhores permanecem na mente, rodando e maturando por muitos dias.
Há por aí a opinião de que a poesia está morta; outros sustentam que ela está mais popular do que nunca, já que se amolda, por seu formato curto, ao compartilhamento via redes sociais. O fenômeno da poesia das redes sociais é controverso; mas engana-se quem acha que ela é tudo o que se produz hoje em dia.
Abaixo, listo obras de sete poetas que li ano passado. Suas obras têm características bem diferentes entre si, e tampouco se confundem com o novo estilo popularizado por Rupi Kaur, Amanda Lovelace e outras, mundialmente falando, e por páginas como “notas sobre ela” e “Eu me chamo Antônio” aqui no Brasil. Nesses livros há mais técnica e recursos e — por que não — mais conteúdo.
A lista contém desde Alice Ruiz, já consagrada, Angélica Freitas, diva da poesia feminista, e Jarrid Arraes, cordelista em atenção, a outros poetas que ainda não atingiram grande distribuição e difusão de suas obras, mas que merecem a atenção do leitor.
“Liberdade Cativeiro”, de Leonardo Teixeira

O livro “Liberdade Cativeiro”, de Leonardo Teixeira, é o primogênito do autor e inaugurou a coleção Novos Versos da Editora Ipêamarelo. Contém 54 poemas de tamanhos variados. Os temas também são diversos, mas todos orbitam mais ou menos em torno de um mesmo assunto: a morte. Ou antes, a superação de um luto. Nas próprias palavras do autor, o livro nasceu de “uma morte dolorosa, que precisou ser expurgada”. E a luta para sobreviver a essa morte, para vencê-la, sente-se em cada poema. É uma luta inerentemente interna, como o autor ressalta em “As regras do jogo”. Alguns poemas nos descrevem o estado pré-vitória, como “Fracasso”, “Um rastro” ou o final de “Nas entrelinhas”. Outros contemplam a própria luta, encontrando nela beleza (Encanto) ou encarando-a com mordaz ironia (Confissão). Há ainda aqueles que apresentam técnicas de batalha (Ereto e Que habita em mim). E, por fim, há os poemas que mostram o outro lado do túnel. Sem pontos de virada hollywoodianos. O nada (ausência constante no livro) e as dores continuam lá, mas o sofredor agora domina sobre eles (Fortaleza).
Li o livro de uma golada só. Um par de horas é tudo o que se precisa para conhecer o trabalho deste escritor, e garanto que não serão horas perdidas. Discordei filosoficamente de alguns dos textos, mas agradaram-me a sonoridade de poemas como “Pressa”, a sutileza de outros, a crueza da terceiros, como o final de “O covarde” (O covarde/ Conta histórias/ O corajoso às vive), que me bateu particularmente enquanto escritora.
Deixo aqui a transcrição de meu poema favorito do livro, para que se possa ter uma ideia do estilo do autor e porque a mensagem desse poema em particular é muito importante:

“Lira de lixo”, de Adriano Scandolara
Cheguei a este livro por meio de um artigo que continha 2–3 poemas do autor, um deles especialmente forte chamado “Anistia”, sobre a ditadura militar, que me impressionou e me fez baixar o PDF do livro que o próprio autor disponibilizara.
O autor também é tradutor, e obviamente conhece bem de literatura, porque as epígrafes são magistralmente escolhidas (gostei especialmente da do H. Heine definindo amor como estrela no monte de estrume), e as referências abundam, em especial à mitologia grega e à Bíblia. O poeta parece ter uma obsessão especial pelo livro de Jó, que eu não censuro e até dá um charme especial ao livro: Jó é um livro dos mais poéticos da Bíblia. Além das citações diretas e paráfrases, aparecem figuras como o Leviatã e o Beemote.
Alguns poemas me agradaram bastante, e destaco “A arte de governar”, “A educação do eremita”, e meu favorito “Thousand yard stare”, além do ciclo Muros que é muito bem escrito.

Confesso, porém, que, diante da primeira impressão causada pelo “Anistia”, a leitura do livro todo foi um desapontamento.
É certo que a análise de poesia é uma coisa que se presta a muita subjetividade, então talvez o livro simplesmente não tenha feito o meu gosto. Boa parte dos poemas me causou repulsa, o que talvez fosse a ideia, já que o conceito do livro é “lira DE LIXO”. Mas a verdade é que achei esse viceralismo um tanto afetado. E a criptografia excessiva das metáforas, junto com o estilo corrido de fluxo confuso de pensamento não soaram como uma prova da elevação poética dos poemas, mas da elevação poética que eles pretendem ter. O autor claramente tem talento sem precisar transformar sua obra na capa transparente do Imperador, visível só para os iniciados.
“Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis”, de Jarid Arraes

“Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis”, da Jarid Arraes, foi o livro escolhido para inaugurar o clube Leia Mulheres na cidade onde moro, Itajaí, no mês de fevereiro de 2020.
Quando me convidaram para a reunião do clube, eu estava atribulada com trabalho e não pude ir. Por coincidência, porém, conheci a responsável pelo projeto aqui na cidade em um evento do dia das mulheres, e ela tinha levado esse livro, que peguei emprestado porque minha mãe, presente na ocasião, se interessou.
Logo que cheguei em casa, folheando o livro — que é lindo, com ilustrações estilo xilogravura em fundo negro — li os primeiros cordéis em voz alta para a minha mãe, que estava ocupada com alguma outra coisa, e me encantei.
Devorei o resto do livro todinho no sábado, lendo a maior parte dos poemas em voz alta, porque quer ver coisa mais linda que a musicalidade do cordel?
Tenho uma queda especial pela literatura nordestina, bem como pelas formas populares de manifestação da literatura (cordel, repente, etc.), e vale dizer que Jarid, que é uma escritora cearense de Juazeiro do Norte, honrou bem demais suas raízes no trabalho aqui compilado.
Segundo entendi do prefácio e da nota da autora, o livro contém apenas uma compilação de cordéis que a autora já fazia antes para uma série sobre mulheres negras fortes da nossa história.
Dos nomes destacados, eu já conhecia alguns. Mas — e aqui cabe repiso algo que foi observado também pela autora na sua nota — só vim a conhecê-las já adulta, por menções aqui e ali e acidentes do destino. Aqualtune, Dandara e Maria Felipa apareceram em dois concursos de contos (sobre mulheres históricas e Brasil império, respectivamente) promovido no Wattpad por mim e por outras meninas que tocávamos um projeto voluntário sobre ficção histórica por lá. Alguns dos contos submetidos aos concursos narravam as histórias delas. As escritoras (Maria Firmina e Carolina Maria de Jesus) eu fiquei conhecendo graças a seus livros. “Quarto de Despejo” é excelente, acho que até já resenhei por aqui.
Nisso está a relevância especial dos cordéis aqui compilados: a maioria das mulheres que eu desconhecia eram lutadoras. Na escola não me ensinaram sobre os quilombos (mesmo havendo pelo menos dois até hoje aqui nas redondezas, o que descobri anos depois no trabalho). Nem sequer o que era um quilombo explicaram direito, e o nome de Zumbi era vagamente citado, sem uma descrição ou feitos específicos para ligar a ele. Então já dá para imaginar quanta atenção receberam todos os outros batalhadores e batalhadoras…
Tudo para perpetuar o mito de que o brasileiro é passivo, e que nossos direitos sempre nos são dados: a independência veio de cima, a abolição veio de cima, os direitos trabalhistas e previdenciários vieram de cima… Que cusparada no sangue dos que morreram por essas causas!…
Mas voltando ao livro, cabe também ressaltar outras histórias curtas, mas peculiares, como a da mulher que ousou peitar um branco que lhe fez mal e, para completa surpresa de quem conhece nossa sociedade racista, recebeu o apoio do povo e da justiça. Ou da pobre escrava educada clandestinamente pelos padres, roubada pelo governo e cujos apelos entraram para a história, apesar de provavelmente terem sido ignorados na prática. A educação salta aos olhos como ferramenta de extrema importância na trajetória da maioria das mulheres descritas no livro. Com o pouco de educação que receberam, às vezes apenas ler e escrever, algumas fizeram muito. E outras, reconhecendo sua importância, trataram de fundar escolas para libertar outros. A boa educação liberta, e é por isso que este livro, ser leitura obrigatória nas escolas. O povo do Brasil, majoritariamente pobre, negro e oprimido (especialmente as mulheres, a quem se acrescenta mais um fator de opressão) precisa conhecer sua História, procurar os padrões e as raízes dessa opressão para poder derrubá-la. E procurar, também, exemplos de luta no passado, para encontrar nelas inspiração.
[dois em um], de Alice Ruiz S.

Alice Ruiz era uma poeta que eu só conhecia de nome e de fama. Esposa de Paulo Leminski e parceira na arte, os dois foram os grandes responsáveis pela tradução dos haikais de Bashô para português, e ela ama haikais e ministra aulas sobre esse tipo de poesia há muitos anos. Sabia também, vagamente, que ela escrevia letras de música e mais algumas coisas sobre suas amizades culturais. A obra em si eu nunca tinha lido.

Este livro é uma junção de tudo que Alice Ruiz publicou na década de 1980, que foi quando ela começou a publicar. Contém, entre outros, Vice Versos, obra que levou o Prêmio Jabuti de poesia em 1989.
O estilo dela é muito semelhante ao do Leminski, apesar de que, pelo pouco que li do Leminski, gostei mais do modo como a Alice utiliza o mesmo estilo. Parece mais vigoroso, mais sólido na pena dela.
Predominam os poemas curtos (muitos haikais, seguindo as regras do haikai ou não) e sonoros, com jogos de significado entremeados em jogos de palavras e letras e ecos. Há também alguns que se aproximam mais da poesia concreta, como “O que é a que é”, um sensacional poema sobre a mulher e como é vista na sociedade, que infelizmente não consegui postar aqui porque a letra é muito miudinha, mas vale dar um Google.
Praticamente é o único poema feminista do livro, e há também alguns de crítica social (como o que dá o título do livro Navalhanaliga: nada na barriga / navalha na liga/ valha), mas a maioria é mais imagético — normalmente sobre a natureza — ou sentimental.
No caso desses últimos, o sentimento em si fica bem exposto, mas aparece puro, abstrato, pois a autora consegue esconder muito bem em suas poucas palavras, o impulso da realidade que a levou a escrever aquilo.

Apenas um dos seus motivos subjacentes transparece, tão forte que perfura o véu de palavras habilmente tecido pela poeta: a morte do filho. Miguel Ângelo, o primeiro filho de Alice e Lemisnki, faleceu de um linfoma aos dez anos. Eu não sabia desse fato da biografia dela, aprendi-o vagamente dos poemas e depois confirmei. Parece que é uma dor que ela nunca conseguiu superar, porque em todas as seções do livro esse assunto volta.

Mas isso não a fez desistir da poesia, pelo contrário — vê-se que Ruiz a usa como método terapêutico. Produz, a partir desse incidente e de tantos outros, pequenas pérolas nas quais o leitor enxerga — como diria pessoa — não as duas dores que o poeta teve, mas só a que ele(a) leitor(a), não tem.
A experiência foi ótima e não vejo a hora de, quando der na telha de novo, procurar mais obras dela. Recomendo este livro a quem gosta de poesia e a quem não gosta também. Quem sabe passa a gostar?
“Chuva de outono”, Gabriel Yukio Goto

Li ainda no Wattpad essa tetralogia de livros de haicais agora condensada num volume só e complementada com novos poemas.

De todos os estilos de poesia que o Gabriel Yukio Goto escreve, o haicai, a meu ver, é o que combina mais com ele. Não por algum estereótipo étnico, mas porque as regras do haicai típico lhe favorecem: a natureza já costuma marcar presença nos poemas dele de qualquer forma, e o esforço para condensar complexos sentimentos, noções e conceitos em três linhas e um punhado de sílabas potencializa a força dos poemas, ao mesmo tempo em que aumenta sua sutileza.

Reli o livro ano passado, quando ele foi para a Amazon, e revivi a experiência prazerosa da primeira leitura. Conquanto consideravelmente reduzida em tamanho, a obra conseguiu conservar a sensação de transcurso temporal que produz, como se acompanhássemos um ano através das leves modificações nas estações. As imagens criadas servem bem à visualização de cenas concretas e às metáforas.

Entremeados a esses poemas, encontramos outros em que o elemento natural está ausente, mas que se encaixam bem aos demais, sem ferir a harmonia do todo.

“um útero é do tamanho de um punho”, de Angélica Freitas

Esse era um daqueles livros cujo título despertava reativava sinopses no meu cérebro, mas que eu nunca tinha pegado para ler. Acabei chegando nele numa busca por poetas contemporâneos para trazer para a oficina de poesia que ministrei, promovida pela Editora Ipêamarelo. Quando vi, tinha lido um terço do livro, e decidi ler o resto assim que tivesse oportunidade.
Angélica Freitas é uma poeta e tradutora — do alemão, ao que parece — pelotense, que publicou dois livros de poemas pela finada editora Cosac Naify: Rilke Shake e este aqui, de 2012, cujo título remete imediatamente à recente onda de poesia feminista ou militante que entrou na moda com Rupi Kaur e Amanda Lovelace. Mas não é bem isso, não. O livro tem sim um viés feminista em boa parte dos poemas, especialmente nas duas primeiras partes (Uma mulher limpa e Mulher de).

Em si mesmo, esse viés não é problemático; o problema é, como bem se expressou um amigo, quando se cruza a linha tênue que separa o poema combativo do textão. Angélica Freitas nunca chega a cruzar essa linha, embora alguns textos esbarrem nela. Há outros, porém, que ao mesmo tempo transbordam de feminismo e de ironia (mulher de vermelho) ou amargor (uma canção popular), conforme o caso, e o sorriso ou o sorriso invertido que provocam é a própria arma pela qual evidenciam sua mensagem ou o problema que abordam.


Outros poemas são puramente líricos, refletindo angústias universais (pós) ou de gênero (a mulher é uma construção) em angústias pessoais (querida angélica).


E o uso que a autora faz da linguagem é muito bom, os poemas são sonoros (mulher de valores), resgatam expressões populares e brincam com seus possíveis sentidos.

Como sempre, não gostei de tudo, mas anexei aqui uns poemas ou trechos que me agradaram particularmente, para que você possa julgar se esse tipo de texto te atrai e se vale a pena investir na leitura.
“num copo de blues bebo poesia”, de André Pinheiro

O último livro que li em 2020 foi “num copo de blues bebo poesia”, de André Pinheiro, lançado pela editora Traços e Capturas. Eu o tinha mais ou menos desde a metade do ano, já havia lido uns poemas salteados, mas só então tive tempo de sentar e apreciá-lo de cabo a rabo.
A obra se compõe de três partes: I — a carne, II — o pulso, III — o fluxo. Não sei se consegui discernir corretamente a temática de cada parte, mas a parte I me pareceu ter poemas mais pessoais e… Se não sociais, pelo menos interpessoais, como “eles…” (o que eu declamei ontem), “burocrata atrás da mesa”, “tenho medo” e “quem somos nós? (distopia)”.
Essa foi minha parte preferida. A segunda parte, por sua vez, é onde o tema da música mais aparece em poemas como “música” e “ritmo” e há bastante intertexto, com poemas sobre poesia.

Outro tema que aparece bastante no texto, seja nas referências religiosas, em poemas dedicados ao tema ou até na própria origem do blues, é a ancestralidade negra africana.
Duas virtudes de destacam na poesia do André: a sonoridade da grande maioria dos poemas e a sutileza de certas passagens. Considero este um livro para ser lido em voz alta. É claro que, lendo no papel, podemos ver a repetição de letras e isso dá um efeito legal, mas a verdadeira vida dos poemas só vem quando libertamos sua sonoridade. Aí é que as ocasionais rimas e as frequentes aliterações e assonâncias e jogos de palavras produzem o efeito musical que justifica o blues do título. Lá ou cá encontra-se uma frase cuja presença parece ser justificada unicamente pela sonoridade, mas isso não é tão frequente. No meio dos jogos de palavras escondem-se, geralmente, sutilezas de sentido.

Tentei destacar algumas dos melhores momentos, que fotografei para adicionar aqui. Declarações fortes de se ficar pensando nelas um tempo após ler.

Outro ponto a destacar são as anáforas (repetições enfáticas), também um dos recursos favoritos do autor e que me fez reconhecer a influência do maravilhoso Drummond na poesia do André. Se você gosta de poesia bem pensada e sonora, este livro é pra você.
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