Um pouco de literatura russa contemporânea

Érika Batista
8 min readJul 2, 2021

Moskvá-Petuchkí (1969–1970), de Venedikt Erofeev

Moskvá-Petuchkí é um livro esquisito. A trama é simples e a forma do livro, sem dúvida, original. Os capítulos curtos são trechos da viagem de trem elétrico entre as cidades do título, cada um engloba um trecho entre duas paradas, e no começo e no fim do livro há alguns capítulos fora do trem. Há referências cruzadas, retomada de temas já levantados, de forma a gerar uma harmonia musical no “poema” (como o qualificava o autor, apesar de ser uma história em prosa) e transformá-lo num todo bem escrito. No entanto, um elemento específico que permeia o livro inteiro tornou a leitura um bocado irritante para mim: pelo menos uns três quartos do livro são sobre bebida.

O personagem principal, narrador e alter ego do autor, Venichka Erofeev, só pensa em bebida e só pensa em termos de bebida também, isto é, ele analisa e compara tudo com a bebida e seus fenômenos paralelos: ressaca, soluço, etc. Se esses raciocínios não fossem por vezes inteligentes, irônicos e interessantes (acabei grifando várias passagens no livro), eu não conseguiria ter uma gota de simpatia pelo personagem principal. No fim das contas ele é um cara de temperamento simpático também, o que ajuda, mas por outro lado é um vagabundo que mal visita o filho, preferindo passar o tempo com a amante quando vai a Petuchki.

O safado também é extremamente erudito e astuto, e consegue justificar suas pataquadas com citações e silogismos e tudo o mais. Ironicamente, ele também é versado em tradição religiosa e bíblica, e as referências bíblicas inundam o livro. Como, aliás, acontece bastante na literatura russa.

Quase todo o livro se compõe de monólogos (ou diálogos mentais), peregrinações e sonhos do narrador. A pequena parte feita de diálogos, quando roubam parte da bebida dele e todo mundo no vagão acaba bebendo junto, é também interessante, mas passa uma imagem de que na Rússia é todo mundo (ou era, na época do autor) acima de tudo, pinguço. Eu não gostaria de espalhar esse livro por aí, se fosse russa, porque ele certamente reforça estereótipos de que eles vêm tentando se livrar. Nem todo mundo fará a separação de que se trata de uma espécie de comédia. Dá para entender por que foi proibido durante a URSS. A imagem que ele retrata dos trabalhadores, do povo, de Moscou e, talvez, até da revolução de 1917 e seus pais (os quatro que aparecem no final) não é muito lisonjeira.

Escola para idiotas (1976), de Sasha Sokolov

Pense no livro mais doido que você já leu. Agora multiplique por três. É provável que ainda não tenha chegado ao nível de estranheza do livro Escola para idiotas (ou Escola para bobos, dependendo da tradução) de Sasha Sokolov. É o equivalente literário da casa muito engraçada que não tinha teto, não tinha nada: Escola para idiotas não tem enredo, conflito, nem posição precisa no tempo ou no espaço.

O herói do livro é um homem (ou menino) esquizofrênico que narra a história em primeira pessoa. Ele tem diversos sintomas da doença, como uma percepção prejudicada de si, da realidade — em especial do tempo — alucinações e um discurso desorganizado que se reflete na narração. Assim, é difícil falar em uma história: o que temos é uma coleção de fatos — reais ou imaginários — sobre a vida desse herói, tornando possível montar um quadro vago e dúbio sobre a vida dele e as pessoas que fazem parte dela.

Um menino, filho único de um promotor de justiça, tem um episódio dissociativo certo dia na casa de campo da família e acredita que desapareceu e se transfigurou em uma flor. Levam-no a um psiquiatra, Dr. Zaus (trocadilho com Dr. Seuss?), com quem ele fica internado por um tempo, depois o matriculam em uma escola para crianças com necessidades especiais. Na escola, ele se apega ao professor de geografia e se apaixona pela de botânica. A morte do professor, Paulo (que ele chama de Saulo) Petróvitch, e a paixão dele pela professora, Vetka (de Elizaveta, trocadilho com “vétka”, ramo, e ramal de ferrovia) servem de motor a muito do que ocorre no livro.

O livro avança pelo princípio associativo. Sabe quando você está pensando em uma coisa e o seu pensamento vai pulando de uma coisa a outra e, quando você vê, uma divagação que começou com o que você comeu no almoço de hoje vai parar no mascote da copa de 2014? Então. Além disso, não há marcas de diálogo, o menino conta histórias dentro de histórias dentro de histórias, a quarta parede é quebrada e o autor tem um domínio abismal da língua. Pobres tradutores.

Aliás, essa obra pré-pós-modernista deve sair pela Editora 34 esse ano. Uma boa pedida para quem quiser ler literatura russa contemporânea experimental

Omon Rá (1992), de Victor Pelevin

Se “Omon Rá” não fosse parte do programa de um curso que eu estou fazendo, provavelmente o teria largado após os primeiros parágrafos. Isso por uma questão de preferência pessoal: quando vi um romance em primeira pessoa sobre um rapaz que “sempre quis ser um cosmonauta” ou coisa parecida, pensei “ah não, lá vem ele me contar a vida inteira, incluindo suas façanhas no espaço”. E se tem uma coisa que eu geralmente não gosto é de história no espaço. Já curti algumas, já brinquei eu mesma de astronauta quando criança, mas ver a saga de alguém virando astronauta me parecia motivacional demais.

Mas segui. Por uns bons capítulos, com ele contando passagens da infância e da adolescência, poucas, é verdade, que ele mesmo declara que prenunciavam seu destino. Só quando ele chega à faculdade de aviação — com boas notas, ele poderia ser selecionado para o programa de cosmonáutica — algumas coisas começam a parecer estranhas. Os alunos são amarrados a camas e têm seus pés espancados. Nesse ponto, uma pulguinha começou a morder-me atrás da orelha, mas pressupus que eu é que não devia ter entendido direito alguma metáfora na língua estrangeira.

Foi só quando o narrador mesmo decidiu revelar a estranheza da sua “missão” que eu vi que aquelas pistas anteriores não tinham sido mal compreendidas, e que, francamente, a história ficou interessante. Isso já foi lá pela metade do livro, quase (ou assim me pareceu), mas o completo surrealismo que veio depois quase compensou a demora do início.

Se eu contar que segredo foi esse que ele revelou, mato a graça da história, mas vale dizer que, desse ponto em diante, a gente encontra farsa dentro de farsa e um desenrolar absurdo cuja graça está no fato de ser encarado com naturalidade pelo narrador e demais os personagens envolvidos. Eles vão vivendo aquela rotina e a gente só quer sacudi-los e dizer “rapaz, não vê o que está acontecendo?!”

Li os capítulos do meio com muito mais interesse que o começo e, para fazer justiça ao autor, preciso dizer que o começo se explica e se justifica lá no meio. Descobrimos que as reminiscências de infância do narrador não estão lá à toa, simplesmente para nos apontar como ele queria ser um cosmonauta e conseguiu, e sim como antecipação de quadros muito importantes que reaparecem com frequência em momentos-chave da história.

Acredito que meus pontos favoritos, suprassumo da loucura, foram a história do pai e do filho que se vestiam de ursos por motivos políticos e o segmento com o “exame de reencarnação” ou coisa parecida, com seu desenlace tanto mais chocante porque meramente insinuado (até ser confirmado lá no fim do livro).

Depois de ler a história inteira é que eu fui pesquisar um pouco mais sobre o livro em si e descobri que ele é classificado como ficção científica e é uma espécie de paródia dos romances edificantes soviéticos, que contavam façanhas dos heróis dos trabalhadores. A cosmonáutica foi um dos ramos que mais deu orgulho para a URSS no período da Guerra Fria e, por muitas gerações, boa parte dos meninos soviéticos respondia que queria ser cosmonauta àquela fatídica pergunta do “o que você quer ser quando crescer”. Iúri Gagárin é um herói nacional até hoje; Valentina Terechkova também.

Viktor Pelevin pegou essa temática e a subverteu por completo. O deboche e a dessacralização do passado soviético são tão grandes que o livro não poderia ter saído senão no início da década de 1990, no impulso antissoviético dos anos que antecederam e sucederam à Perestroika, em que a máxima parecia ser romper com tudo o que lembrasse o passado recente.

Pelo período de lançamento e pelas próprias características da obra, “Omon Rá” pertence à tendência do pós-modernismo russo. Como acontece volta e meia em determinadas áreas e períodos da literatura, a importância dos nomes merece destaque nessa corrente, já que, por vezes, eles estão carregados de significados relevantes para a definição do caráter do personagem e para a compreensão da obra. O mesmo acontece em “Omon Rá”, a começar pelo prenome do protagonista.

Omon soa como Amon, devido a uma particularidade de pronúncia russa que faz com que o som do “o” reduza para “a” quando ele não está na sílaba tônica (como o nosso “o” faz, virando “u”, tipo em “carro”). De modo que o título remete ao deus egípcio “Amon Rá”. Além disso — e, à luz do intento do livro, provavelmente mais importante — OMON é a sigla da Unidade de Polícia de Propósitos Especiais soviética (ainda existente, hoje se chama Unidade Móvel de Propósitos Especiais). O narrador nos diz que seu pai, policial decadente, colocou esse nome nele para já predestiná-lo ao serviço das forças de segurança.

E ele não é o único personagem com nome de sigla no livro. О “comandante do voo”, um dos principais articuladores de toda a história, se chama Pkhadzer Vladilenovitch Pidorenko. Segunda ou terceira geração da sua família pertencente à KGB, o prenome dele vem Partiino-khoziaistvennyi aktiv Dzerjinskogo raiona (Núcleo Ativo Partidário-Econômico do Bairro de Dzerjinski), sendo que Dzerjinski é um bairro de Novosibirsk, batizado em homenagem a Félix Dzerjinski, fundador da Tcheká, a primeira polícia secreta soviética, antecessora da KGB. O patronímico e o sobrenome são igualmente dignos de nota: Vladilenovitch indica que o nome do pai do personagem era Vladilen, nome composto a partir de “Vladimir Lenin”. Muitas crianças nascidas nos primeiros anos após a Revolução Comunista receberam nomes estranhos para os padrões tradicionais russos, que romperam com os valores cristãos do período tsarista para exaltar os novos valores industriais e revolucionários, homenageando pessoas e até objetos associados à Revolução e ao progresso tecnológico. Por fim, “Pidorenko” remete imediatamente a “pídor”, diminutivo de “pederast” (pederasta), termo pejorativo e vulgar para “homossexual”, também usado como xingamento genérico para pessoa ruim ou desagradável.

Até onde eu sei, não existe tradução deste livro para o português ainda, mas existe para o inglês. Outras obras para conhecer o autor são “A vida dos insetos” (Rocco, 2000), “A metralhadora de argila” (Rocco, 2003) e “O elmo do horror” (Cia das Letras, 2006). Também há um conto dele incluído na Antologia do Humor Russo da Editora 34.

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Érika Batista

Escritora, leitora, e tradutora. Conheça meus livros, projetos, portfolio e redes sociais em https://linktr.ee/erika.sbat