Versatilidade gastronômica

Érika Batista
9 min readOct 7, 2021

Um conto local.

A luzinha vermelha da câmera piscou, anunciando a gravação. A apresentadora loura tingida de meia-idade — para que todas as nossas donas de casa louras tingidas de meia-idade pudessem se identificar — anunciou o convidado do dia.

— Bom dia, Brasil! Esse rapaz simpático aqui comigo hoje é o Pedro. O Pedro é um gênio da culinária versátil. Muita gente já ouviu falar dele, mas nem sabe que ouviu, porque o Pedro, pela sua profissão, tem que ser discreto. Mas então, Pedro, conta pra gente: o que você vai nos ensinar a fazer hoje?

A câmera deslizou sobre o balcão de cozinha notavelmente vago até encontrar o rosto do convidado, que olhava para a apresentadora com um sorrisinho simpático. Pedro tinha cabelos castanhos, pele bronzeada, altura média, compleição média… Em suma, sumiria na multidão. Sua única feição notável era o olhar, devido ao brilho vivo que carregava enquanto ele media e analisava a apresentadora. Qual seria seu nível de inteligência? O mesmo da última velhinha para quem ele tinha ensinado essa receita? Ou teria que caprichar mais?

— Então, Joana — disse ele, finalmente — , hoje vamos conhecer minha famosa receita de sopa de pedra.

Joana fingiu espanto, botou até a mão na boca, embora soubesse muito bem o que ele ia dizer. Como a produção tinha penado para encontrar Pedro Malasartes! Ele andava desaparecido até das bibliotecas. Tivera que ser buscado nas memórias de infância de alguém. Mas o esforço era necessário, ninguém além dele os poderia valer naquele momento.

— Pedra? — repetiu ela, boquiabrindo-se. Voltando-se para a câmera, disse: — Essa eu quero ver, gente, nem eu estou acreditando. Já vi usarem osso de galinha, casca de arroz e outros ingredientes inusitados, mas pedra é realmente… Disponível, né? Acho que todo mundo pode arranjar uma pedra. Aquele cristal de quartzo da sua prima good vibes ou até o paralelepípedo solto da esquina já podem quebrar um galho no momento de aperto. O paralelepípedo, daquele tamanho, deve alimentar uma família de cinco pessoas, pelo menos, não?

— Bom…

— Ou talvez o melhor seja quebrar em vários pedaços e congelar para a semana? É, porque ele vai na sopa, e assim rende melhor, não? — E, para a câmera de novo: — Então, pessoal, sabe aquele buraco da sua rua que a prefeitura nunca consertou, por mais que você avisasse? É agora que ele vai ser útil. Se tiver calçamento solto em volta, claro. É uma nova forma que o governo pode estar tendo de prover o alimento para a população, não acha?

Interpelado novamente, Pedro balbuciou alguma coisa e deu de ombros.

— Mas chega de enrolar — disse então Joana, e se aproximou mais do convidado por trás do balcão, lançando um olhar sobre os escassos ingredientes que este continha. Escassos mesmo: uma caçarola e uma pedra média redondinha, polida a ponto de brilhar, para pelo menos capricharem na apresentação do prato. — Diga-nos, Pedro, por onde a gente começa? E, enquanto você prepara, vamos conversando mais sobre sua carreira e experiência e tal.

Pedro, sempre muito falador e, portanto, perturbado por não o deixarem soltar a língua, concordou com um aceno. Pegando a caçarola, foi até a pia e a encheu com água até um pouco acima da metade.

— O primeiro passo, claro — disse ele com cautela, temendo ser interrompido de novo — é lavar bem a pedra. Aqui eu sei que a sua produção já fez isso, por isso passei direto pro passo dois, que é encher a panela de água. O quanto de água vai varia muito, depende do resultado que você quer. Pode encher tudo, se quiser uma canja, ou botar bem pouca água, se quiser um caldo mais grosso. Tem gente que guarda o caldo e vai usando aos poucos, dissolvendo com água, conforme a necessidade. Como se faz com chá, sabe?

— Sei, sei sim, já ouvi falar de umas culturas orientais que fervem bem e preparam uma essência para servir de base pro chá propriamente dito mais tarde — disse Joana. — Tivemos um convidado ensinando a fazer isso com o café semana passada — e, virando-se para a câmera mais uma vez, falou com os espectadores: — Está vendo só, gente, como essa receita é econômica? Além de congelar a pedra, você ainda pode guardar o caldo depois da primeira fervura. Acho que, assim, o paralelepípedo alimenta uma família por um mês, não acha? — Ela olhou para Pedro por cima do ombro.

Como todo bom golpista, Malasartes se apressou a concordar, para preparar o golpe.

— Aham, aham. E é muito nutritivo — disse, botando a pedra na caçarola com um movimento fluido bastante cenográfico. Ligou o fogão, enquanto Joana Mariana consultava seu retângulo de papelão.

— Era o que eu ia dizer a seguir, você adivinhou meus pensamentos. — Andando até outra parte do estúdio com uma tela, onde mostrariam agora um VT, disse: — A gente já imaginava que essa dieta seria rica pelo menos em minerais — risos. — Mas dá para variar a pedra, dependendo das suas condições ou do lugar onde mora, de acordo com suas necessidades nutricionais. A produção preparou uma matéria sobre os nutrientes que podem ser encontrados nos tipos mais comuns de pedras: brita, calcário, granito, basalto… Entrevistamos nutricionistas e geólogos, e eles ensinarão o que você pode encontrar, dependendo do lugar onde mora no Brasil.

O câmera cortou o vídeo nessa parte, e a TV passou a exibir o vídeo pré-pronto. O sorriso de Joana sumiu, ela arqueou as costas tensas, sacudiu a cabeça, e uma expressão exasperada apareceu em seus lábios por um momento. Aquela palhaçada. Mas tudo bem, não estava havia tantas décadas naquela emissora por ficar dando opinião. Voltando em uma linha diagonal para junto de Malasartes, que a observava com um olhar curioso, ela ouviu o sino que indicava a retomada do programa ao vivo e pôs-se ereta e sorridente de novo.

— Não é legal, gente? Vocês sabiam que havia tanto tipo de pedra no Brasil? É, eu também não, mas é tanta coisa que a gente não vê direito no dia a dia, não aprecia, sabe? — e, para o convidado. — Quanto tempo a gente deixa a pedra fervendo, Pedro? Existe alguma versão mais rápida da receita? Porque sabe como é, o gás…

— Existem muitas versões da receita, Joana, ela é extremamente adaptável.

Com o brilho no olhar mais vivo do que nunca, ele lançou um olhar rápido para ela, analisando uma última vez a presa. Chegava até a estar respirando mais depressa. A hora era agora.

— Por exemplo, a que eu queria mostrar hoje tem um toque especial. Se a gente botar uma batatinha, umazinha, a sustância da sopa já multiplica por dez.

Joana fechou a cara, de lado para a câmera; o câmera pareceu assustado; os assistentes de palco, perplexos ou irritados. Essa parte não fora combinada. Pedro não tinha falado nada sobre uma batata ao topar a participação no programa. Não estava no mise en place. Podiam, é claro, dar uma corridinha na quitanda da esquina e comprar uma, mas aí já desvirtuava o propósito, já tornava a receita mais difícil de o telespectador copiar.

— Vamos… vamos tentar — decidiu Joana, após muita hesitação e olhares trocados com o produtor do show por trás das câmeras. — Já que uma batata enriquece tanto assim a receita, não custa a gente dar essa alternativa, né? Lembrando que o pessoal de casa pode fazer a receita simples que é boa também.

Pedro ergueu uma sobrancelha, mas não comentou. Vendo que um assistente se dispunha a sair para comprar a batata, soltou:

— Se desse para trazer também uma cenourinha, aí sim vocês iam ver que primor de sopa que ia sair. Uma coisa inigualável!

Ele ia pedir ainda uma folha de repolho, mas os cinquenta olhares que o fuzilaram o desencorajaram de fazer isso já. Cara feia para ele era fome, ele não se intimidava; mas, como todo bom malandro, sabia que o segredo era ir tomando conta do negócio devagarinho. Então respondeu com gosto e simpatia às perguntas de Joana sobre ele, conversinha mole para enrolar enquanto o assistente não voltava. Não deu, é claro, nenhuma resposta assertiva, algo que revelasse sua procedência, modo de vida ou intenções — era experiente demais para cometer uma burrada dessas. Mas, ainda assim, conseguiu deixar o público com a sensação de que o conhecia ou querendo conhece-lo, todo mundo sentido que ele seria um amigão do peito, se tivessem oportunidade de se encontrar.

Os legumes chegaram. Continuando o fluxo da conversa, Malasartes lavou-os e cortou-os com esmero, usando os cortadores em forma de coração e estrelinha — “Para as crianças gostarem mais do prato”, disse — e conferindo ares de importância a cada movimento.

— Então, para quem tem necessidade de fibras… a gente sabe que tanta gente sofre de prisão de ventre hoje em dia, né? Para quem tem necessidade — emendou com ar casual, enquanto mexia o líquido — seria bom colocar uma verdurinha. Umas folhas de couve aqui, nossa, fariam um milagre.

Joana parecia assustada. Alguém veio dos bastidores e cochichou alguma coisa com ela atrás do retângulo de papelão. Ela acenou afirmativamente.

— Ah, Pedro — disse, então, enquanto o assistente corria de volta para seu lugar — tenho certeza que seria ótimo. Que tal você vir aqui outro dia e nos ensinar essa versão diferente? Podemos combinar em uma segunda, depois do dia de descarte da feira, que tal? Aí o telespectador vai estar preparado para seguir nosso passo a passo. Traremos alguém também que ensine a revitalizar verduras… Sabiam que dá para recuperar aquela parte preta mergulhando na água?

Pedro trincou os dentes e anuiu. Mas não desistiu. Umas mexidas de colher de pau depois, disse:

— Ah, sabe o quê? Vi o programa de vocês semana passada sobre os pés de galinha, e a primeira coisa que lembrei foi da versão desta sopa que dá para fazer com elas. Que sabor, que densidade! Se quiser, eu mostro agora. Será que não sobrou algum na geladeira, daquele programa lá?

— Hoje não — respondeu Joana, com a voz grossa de tão tensa. Tossindo para recuperar ao menos parte da doçura, acrescentou: — Porque queremos oferecer uma variedade para o pessoal de casa, sabe? Para uma dieta balanceada, não usar sempre os mesmos ingredientes, fazer um prato mais colorido. E, além disso, hoje já prometemos que a receita seria vegana.

— Hm. — Foi a vez de Pedro pigarrear para se controlar. Uia, que cabeças-duras! Eram mais difíceis de dobrar do que a velha sovina, sinceramente. Em todos os seus anos nessa indústria vital, Malasartes jamais encontrara tamanhos casquinhas de siri. Bufando de leve com o nariz e sorrindo para disfarçar, fez uma última tentativa. — Bom, então só nos resta adicionar o sal para dar um gostinho.

Sim, ele teve que pedir, pois também não havia nenhum pote com pó branco no balcão. Joana pareceu constrangida.

— É que prometemos que o prato de hoje seria apropriado para hipertensos…

O sorrisinho constante abandonou o rosto de Malasartes, que ficou reto e severo como uma tábua. Ele empalideceu, sentindo que tinham finalmente engambelado o engabelador. Malasartes, o grande, o tradicional, invicto — até agora. A raiva e a vergonha foram fortes demais para ele aguentar. Perdendo toda a paciência, deu um tabefe na mesa.

— Assim não dá! — Alçando a perna em um movimento inesperado digno de Jackie Chan, chutou a caçarola, obrigando Joana a saltar para trás enquanto a pedra caía com um baque e a água se derramava no chão do estúdio, levando junto as estrelinhas e corações amarelo e laranja. — Vocês quebraram o malandro! O malandro, a instituição mais sólida do Brasil — esbravejou, ondeando o indicador no ar. E então foi-se embora pisando duro.

Joana fez menção de correr atrás dele, quase escorregando na água com seus saltos de cinco centímetros e fazendo a blusa preta e branca com mangas de parapente se agitar feito as asas de um morcego metade albino. Lembrando-se de que ainda estavam ao vivo, freou de repente, oscilando mas mantendo o equilíbrio, e se virou uma última vez para a câmera com o sorriso de apresentadora.

— Vamos para um intervalo rapidinho e no próximo bloco vamos conhecer dois convidados estrangeiros super especiais, dois alfaiates que já trabalharam para um imperador e aceitaram vir aqui nos ensinar a fazer uma roupa ma-ra-vi-lho-sa que só pessoas inteligentes conseguem enxergar. Não saiam daí, voltamos já!

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Érika Batista

Escritora, leitora, e tradutora. Conheça meus livros, projetos, portfolio e redes sociais em https://linktr.ee/erika.sbat