Viver a escrita e escrever a vida

Érika Batista
5 min readJan 9, 2023

Algumas mudanças, ou Pegando embalo

Tenho saudade de escrever. Mas minha relação com a literatura está estranha ultimamente. Sinto que a forcei demais, tentando obter com ela o sustento, e é aquela coisa — amigos e dinheiro nunca se misturam bem. O trabalho tem sempre um quê de exploração do homem pelo homem que tira o prazer das coisas. Com o trabalho não quero dizer a atividade em si, que, com frequência, ainda traz prazer mesmo se confinada a uma relação de precarização, mas a venda do próprio tempo, a pressa, a pressão, o prazo, o pouco que rende, por vezes, em reconhecimento e em dinheiro mesmo, a alienação do produto do nosso trabalho, a submissão da criatividade às demandas do mercado, o tempo vendido, as outras atividades que sentimos a todo momento serem roubadas de nós… Tudo isso vai adicionando gotas de amargor à lida diária. Adicione-se, no meu campo específico, as hipocrisias do meio artístico e literário e a quase obrigação atual de virar “criador de conteúdo”, fazendo jornada tripla para ̶e̶n̶c̶h̶e̶r̶ ̶o̶s̶ ̶b̶o̶l̶s̶o̶s̶ ̶d̶a̶ ̶B̶i̶g̶T̶e̶c̶h̶ conseguir alcance e oportunidades, e a motivação para ler ou escrever qualquer coisa no tempo livre fenece. Por ranço, até.

Há aquele dito “trabalhe com o que você gosta e não vai ter que trabalhar um dia na vida” e há também a já conhecida paródia “trabalhe com o que você gosta e não vai mais gostar de nada na vida”. A segunda versão, tristemente, é muito mais realista.

Mas o fato é que ainda gosto de escrever. (Ainda gosto de ler também, embora isso venha sendo cada vez mais difícil. Ultimamente, só com motivação externa, como uma leitura conjunta em boa companhia. Saudades da adolescente que lia um ou dois livros de cento e poucas páginas por dia). Ainda gosto de escrever, não, ainda preciso escrever, e não sei se ainda serei eu mesma se um dia não precisar.

Da ficção, estou distante. Nem é por falta de ideias, embora elas estejam mais escassas do que em outros tempos. Atribuo isso, em parte, ao confinamento e reclusão dos últimos anos que, para além da pandemia e do trabalho em home office, vem das tendências da minha personalidade, mas sei que não faz super bem para minha criatividade. Sei, também, que nenhum confinamento retém minha criatividade se eu quiser: literalmente qualquer coisa a ativa. Creio que a razão está mais na minha cabeça, totalmente envolvida em outros assuntos — nos quais é bom que ela esteja: é hora, e é saudável.

Mas, como eu disse, não é por falta de ideias. Tenho trocentas na fila, anotadas em toda espécie de cadernos que há por aqui, no bloco de notas do celular e sabe Deus mais onde. Poderia me aproximar delas. Poderia procurar concursos e participar de desafios: alguns dos meus melhores textos foram criados assim, a partir de exercícios despretensiosos. Como eu disse, não temo a falta de criatividade. A curiosidade a garante para mim.

O que tenho sentido dificuldade é em conectar ideias e atividade, vontade de escrever. É em fazer a ponte entre as ideias e palavras, entre as palavras e uma folha em branco. Parte era falta de tempo ou energia por causa de trabalho. Parte é força do hábito, um desacostumar. Passei muito tempo seguido dedicando-me apenas a retransmitir palavras alheias, via traduções e resenhas. Isso é bom, tem suas vantagens de todo tipo, inclusive no desenvolvimento da técnica da escrita. Mas…

Mas escrita, para mim, sempre foi expressão — e liberdade. Foi dizer o que tem dentro de mim, expor as coisas que passaram muito tempo cozinhando ou que simplesmente acabei de viver. Tive diário por muito tempo, outro hábito que até tentei retomar algumas vezes depois de adulta, mas não consegui manter a consistência. Aí entram os hábitos do século XXI, mas também a questão da liberdade. O diário é uma rotina, e uma rotina na adolescência, quando você tem tanta parte do seu tempo para si, é uma coisa. Uma rotina quando sua vida inteira já é uma rotina vendida para terceiros — outra muito diferente.

Eu gosto de criar textos úteis e belos para os outros, mas sinto que não conseguirei voltar a escrever se não me reconectar com esse núcleo de expressão e liberdade. De escrever ao sabor da vontade, inteiramente. Quando me der na telha e sobre o que me der na telha.

E é aí que entra este blog.

No impulso de profissionalização, e em parte por ciúme da minha privacidade e um gosto por organização e “cada coisa no seu lugar”, preferi manter aqui para temas literários. Quase todos os textos aqui, até o momento, têm esse cunho. Blogs de estilo de vida nunca foram a minha praia e não é bem isso que quero fazer aqui, mas quero escrever sobre minha vida, sim.

Quero escrever sobre o que tenho para escrever. Sobre o que tem me empolgado em cada momento. Neste momento, isso não é literatura, mas tricô e crochê e eventualmente alguma viagem ou museu — se me der vontade de mostrar ou falar disso; não presto pra instagrammer — e talvez algum conteúdo de beleza, tema que me interessou uns anos atrás, mas agora até já enjoei um pouco. Alguma política pode aparecer, já que aparece no meu dia a dia o tempo todo. Mas não prometo; já tem tanta gente falando disso, nem todos dizendo coisa que preste. Aliás, “nem todos” é ser gentil. Falarei se quiser, se achar relevante.

E ponto.

A literatura retornará eventualmente: como eu disse, ela faz parte de mim. Preciso descansar dela, e, na verdade, isto aqui é uma tentativa de me reconectar pela tangente. Considero este texto um sucesso, porque simplesmente abri o editor e escrevi, como sempre gostei de fazer, e assim ele saiu como um perfeito exemplo do que vocês podem esperar no futuro (muito mais “metatêxtico” do que os seguintes, espero) e ajudará a decidir se querem ficar por aqui. Se têm paciência para esperar o retorno da literatura — ou talvez vocês descubram que essa anarquia nova, por ser mais livre, pode ser até mais interessante — ou pode ser simplesmente ignorada.

Um grande abraço e um feliz 2023.

Volto um dia, quando eu quiser, não sei quando.

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Érika Batista

Escritora, leitora, e tradutora. Conheça meus livros, projetos, portfolio e redes sociais em https://linktr.ee/erika.sbat